segunda-feira, outubro 31, 2011

Crónica de Segunda - "Que farei quando tudo seca?"

É dia de crónica, as horas passam, está chuva lá fora e já não posso usar as nuvens em Paris como metáfora para o cinzento que vai cá dentro ou noutro sítio qualquer. É que agora há nuvens mesmo aqui ao pé, não preciso imaginar outro país, outro lugar, corta-me esse prazer. O sol cedeu vez ao Outono carregadinho de nuvens e elas carregadinhas de chuva. Acontece que a chuva me deprime e embrutece, com a chuva não há crónica que se aguente face à minha sisudez de humores. Sobre o que escrever então?
Começa logo por me faltar imaginação para a crónica e para a literatura, aqui mais perto já ao ouvido lhe confesso, estimado leitor (eu às vezes acho que alguém me lê), para a vida também já vai faltando a paciência e a imaginação, creio que a isso chamam envelhecimento – os mais sagazes chamam-lhe amadurecimento para não se verem ao espelho com rugas e cãs.
Vai daí que tenha apenas uma frase que inventei por inventar e nem sequer é totalmente original – há alguém original, afinal? – já que é uma deturpação de um genial título de Lobo Antunes – “Que farei quando tudo seca?” Viria a questão a propósito do que fazer em nós quando nos deixamos secar? Secar ao ponto de as lágrimas não correrem e em vez delas um esgar, ou pior, em vez delas nada, um olhar vazio, seco por dentro, uma expressão inexpressiva, a expressão de não expressar nada, de não sentir nada. Secar por dentro é deixar de sentir ou sentir mas não notar, ou é um não notar de sentir pouco, quase nada, já passou, já não dói! Já não – enfim.
“Que farei quando tudo seca?” – que mais coisas podemos deixar secar dentro de nós além das lágrimas? A ternura? O beijo lançado no vento que nunca chegou a pousar? A memória antes tão viva e agora uma sombra apenas, um nevoeiro sobre os olhos – “Lembras-te? – Acho que não me recordo bem.” Tudo tão vago como se apenas sonhado. E nem uma ideia para esta crónica, tudo seco.
Chuva nos telhados, vento a empurrar as nuvens para mais perto. Dantes gostava de nuvens, quando achava que também eu nuvem, não cinzenta, branquinha, assim de ar virginal, não a ameaçar chuva mas antes a proteger do mal. Mas era tudo invenção, tolice, metáfora bem tosca, tudo tão irreal.
Tudo seco. Que farei quando tudo seca e nem lágrimas? Molhada a face de chuva apenas. Só esta chuva para inundar o chão tão seco, tão inóspito, desértico, a abrir fendas de secura, um cacto também ele em risco de perecer. Só a chuva a fingir lágrimas do céu para nos molhar.

segunda-feira, outubro 24, 2011

Crónica de Segunda - A Crónica dos Bons Malucos

O título da crónica foi ostensivamente deturpado do famoso livro de Mário Zambujal. Talvez me tenha vindo à ideia por agora o mesmo livro, que ainda não li e do qual não vi a versão cinematográfica, ter sido transformado 30 anos depois em musical. Certo é que me lembrei deste título como um bom corolário a uma sucessão de acontecimentos fortuitos numa tarde avulsa de um dia qualquer – como o de hoje.
Num elevador sou puxada para cima apesar de pretender descer. Atingindo o último andar do prédio o elevador abre as portas e um rapaz, que o esperava, antes de entrar questiona: “vai descer?”. Respondo-lhe que sim, acrescento “não tem mais por onde subir!”. Trocamos sorrisos, nada mais. Ele continua a responder a mensagens no telemóvel e eu continuo a pensar numa conversa de ontem – sobre a impossibilidade de termos um GPS interior, que nos mostrasse os mapas dentro de nós por onde temos de nos orientar.
Adiante numa montra de relógios caros um sem-abrigo, provavelmente drogado, certamente maluco, comenta para ele próprio mas em voz audível, os preços dos relógios, entremeando as frases com vernáculo “Este ainda é mais caro que aquele, F****-se!” sem se perceber se é presumível comprador, eventual assaltante ou apenas um apreciador de mecanismos e engrenagens nos intervalos permitidos pelo consumo de ácidos. Onde o levaria o GPS interior? Tic-tac, tic-tac, tic-tac, onde iria parar?
Num centro comercial, sentada a uma mesa com um copo de cerveja uma velha fala sozinha, como se ao seu lado se encontrasse uma amiga imaginária a quem contar os desmandos da vida, peripécias dos filhos ou dos netos, coisas de mulher viúva, mas só, gesticulando para a amiga, esperando a sua anuência “estás a ver?”. Não sei se amiga viu. Levantou-se pouco depois, sacudindo a saia roçada e um pouco amarfanhada, caminhando titubeante com o copo de cerveja na mão. O GPS levá-la-ia a que lugar?
Num café da cidade uns olhos que não são bem os teus mas são tão parecidos que eu quase que acreditei seres tu. Um perfume que não sendo o teu ficaria igual preso nas pontas dos meus dedos, eu sei. Deixa-me tocar-te os olhos como dantes, não agora não, não agora que o meu GPS interior deu a volta, enganou-se, ficou tonto, enlouqueceu “faça inversão de marcha assim que possível” – não sei se vai ser – “faça inversão de marcha assim que possível” – não sei se consigo – “faça inversão de marcha assim que possível”.
Ainda queria ter tempo de perguntar-te porque estão tristes os teus olhos mas… “faça inversão de marcha assim que possível” – nunca se deve desobedecer ao GPS, sob pena de nos perdermos e nunca mais nos conseguirmos encontrar!

segunda-feira, outubro 17, 2011

Crónica de Segunda - Os amigos dos médicos

Esta Crónica de Segunda de hoje não é bem uma crónica mas antes um preito à solidão. Não me entendam mal – gosto de estar só. Costumo dizer, e acredito no que digo, que me agrada tanto a solidão como uma boa companhia. Não que conseguisse prevalecer em solidão mas também não sobreviveria sem longos momentos dela, gratos momentos de silêncio e interioridade onde me sento e escrevo coisas como esta.
Vem esta crónica a propósito de uma classe que conheço bem por inerência à minha vida particular – os médicos. Não falarei sobre eles mas sobre os seus amigos.
Dividem-se em duas distintas classes os amigos dos médicos – outros médicos e os outros, os não médicos. Os primeiros surgem pelas contingências próprias do exercício da profissão – uns apanhados nos bancos da faculdade e outros tantos pela via do trabalho, colegas de serviço, de hospital, de centro de saúde, etc. São uma seita de difícil digestão, se em volta de uma mesa é certinha a conversa sobre doenças e doentes, seus mandos e desmandos, antibióticos e clisteres, quando não são conversas ainda mais avessas por versarem escalas de urgência, noites perdidas, todo um rosário de maleitas concernentes a uma vida sem rumo ou rotinas de volta da dor, das feridas, da miséria e do nojo dos outros. Amámo-los mas fugimos deles, ninguém tem paciência para se ouvir em eco e se ver ao espelho todo o dia.
Há, depois, os não médicos. Desde colegas da escola perdidos no tempo ao vizinho do andar de cima com quem se fez amizade, as suas proveniências são as mais diversas. Com todos eles partilhamos segredos e ternuras, gargalhadas e lágrimas, como é natural. Têm estes amigos um traço comum, os amigos dos médicos não ligam para dizer “tenho saudades tuas” nem para dizer “sinto-te a falta” ou uma coisa mais comezinha tal como “Como estás? Tenho pensado em ti.” Os amigos dos médicos ligam para dizer “dói-me a cabeça” ou “dói-me a barriga”. Há que perceber isto como uma vantagem anti-pieguice, os amigos dos médicos quando os encontram na rua não lhes pedem abraços, pedem receitas e se vêm com saúde atestados de robustez. Claro que entre uma dor e outra nos desabam contra o peito e, amigos que somos, serenámo-los no afago do colo – e é tão bom isso! – quando a dor se acalma levantam voo como um pássaro ferido a quem tivéssemos remendado a asa e é bonito o seu voo que ficamos a vigiar de longe, sabendo sempre que hão-de voltar. Reconhecerão o lugar e a ele voltarão quando a próxima gripe lhes pegar. Abençoado seja o micróbio que os ataca.
E se estou aqui sozinha neste café não é porque os amigos que tenho não me sintam a falta – que tolice! É apenas porque os tratei bem, vacinados e vitaminados nada lhes dói. Graças a Deus!

segunda-feira, outubro 10, 2011

Crónica de Segunda - As nuvens no céu de Paris

Aviso prévio: A Crónica de Segunda de hoje sai fortemente prejudicada pelas nuvens no céu – estão aqui a sussurrar-me que o céu do Porto não está nublado e as temperaturas de Verão não permitem sequer pensar que o Outono já tomou conta do calendário – pois que seja, que me interessa lá isso – a Crónica de Segunda de hoje sai fortemente prejudicada pelas nuvens no céu de Paris (como espero não ter leitores em Paris e como o Inverno costuma chegar lá primeiro do que cá espero que não me venha bater no ombro, despertando-me para a dolorosa realidade de não estar Paris coberta de nuvens, como convém à minha crónica de hoje).
São certamente essas nuvens, não pode ser outra coisa, que me trazem à memória, como aos velhinhos, imagens fugazes, como frames de um filme a sépia (que liga muito bem com as nuvens e nestas coisas da literatura, mesmo a mais croniqueira, devemos ter atenção à estética, ao estilo), coisas antigas de antigos abraços, piadas tontas de amigos entretanto perdidos, intimidades, contradições, sorrisos que se estendiam nos lábios e ameaçavam prolongar-se nos olhares, sorrateiras cumplicidades que ganhavam vida como um segredo, duas mãos que se apertassem fingindo um abraço inteiro que ninguém mais vê.
De repente, sob o efeito dos céus cinzentos… de Paris, os cafés do Porto, velhos, antigos, que eu percorro por vício, são subitamente lugares vazios, bafientos, incómodos, povoados de memórias boas mas distantes, como sombras que tentamos em vão agarrar com as pontas dos dedos, fantasmas evanescentes, coisas que parecem existir apenas na nossa imaginação ou por trás, muito por trás das nuvens que cobrem os céus… de Paris. Um perfume que fica muito para lá do corpo, já na sua ausência, serve de memória e enquanto o olfacto nos deixar não nos sentimos sós, somos a mesma realidade ficcionada, um ralenti da cena passada, o actor sai de cena mas deixa o seu lastro sob a forma de perfume e é como se ainda ali estivesse, um holograma, uma imagem apenas imaginada, mas ali, enquanto o perfume permanecer. Tudo isso a ser levado e lavado pelo vento, o mesmo que há-de empurrar as nuvens dos céus de Paris, de Londres, Nova Iorque, Xangai, que sei eu! Sei que olho o céu que me cobre, límpido, sem nuvens, tiro o casaco, aqui é Verão, e penso que a brisa que acabou de me percorrer talvez chegue tão longe como Paris, Londres, Xangai… e leve as nuvens que tanto prejudicaram esta crónica que podia muito bem acabar com um sorriso!

domingo, outubro 09, 2011

Os escombros (uma reposição)

Há uns anos, escrevi este poema ao descer as escadas da Casa da Música. Ontem estive lá outra vez e lembrei-me (como poderia não me lembrar...) deste já velho poema. Partilho-o (em reposição do meu meu defunto blog o "era de noite chovia" para quem ainda se lembrar dele)


Foto de Luís Lobo Henriques








O que resta nos escombros do silêncio

Serás, amanhã, notícia no jornal
e isso que importa,
não estarei lá para ler
de ti a folha morta,
já não te acompanho no silêncio
das portadas,
já de nós não há memória
ao descermos estas escadas

fomos rio impetuoso
que esbarrou sem liberdade,
na barragem construída
entre rugas de saudade,
fomos vento que passou
tão leve e ledo,
que o amanhã tornou-se um ontem
feito medo.
Fomos alma, fomos cor,
ou coisa breve,
e fomos morrendo os dois
cheios de neve
nos meandros da memória
que nos serve

esta liquefeita
angústia que se bebe

segunda-feira, outubro 03, 2011

Crónica de Segunda - Midnight in Real Life

Já passei algumas meias-noites em Paris, ora na cama do hotel, ora nas ruas parisienses mas nunca nada de tão extraordinário me aconteceu como a Gil, personagem principal de “Midnight in Paris” o mais recente filme de Woody Allen, o autor de Rosa Púrpura do Cairo que, mais uma vez, faz os seus personagens atravessar a realidade e penetrar numa meta-realidade de outro tempo. O filme leva alguns dos seus personagens numa espécie de viagem encantada a um tempo anterior ao seu, tornando-os mais felizes do que no tempo em que vivem. Trata-se, é-nos revelado ao longo do filme, de uma metáfora, um síndroma de rejeição do presente a favor de um passado que imaginamos mais glamoroso e por isso mais capaz de nos dar felicidade. No rescaldo do filme muitos dos espectadores reencontram-se nestes personagens, identificando-se com eles.
Pessoalmente, não pertenço a esse grupo. Sempre tive uma forte relação com o passado e uma certa nostalgia em relação a algumas coisas dele, nomeadamente dificuldade em me desfazer de certos objectos que simbolicamente representam algo do meu passado afectivo, mas o passado ao qual me sinto ligada é o meu e não o dos meus antecessores, ou seja ligo-me ao tempo em que vivi e não àquele que não conheci. Quando jovem adolescente se questionada sobre uma época em que gostaria de ter vivido diria que não queria regredir séculos mas apenas umas décadas. Gostaria de ter vivenciado os loucos anos 60, a eclosão das grandes liberdades ao som de Beatles e Dylan. Ouvia horas de música dos 60 (e ainda ouço) e achava tudo aquilo delicioso (à excepção das calças boca de sino). Mas durou pouco essa fantasia, depressa percebi que o meu tempo era aquele (mais concretamente à volta dos 80’s) pois ali despertava eu para as minhas próprias liberdades, os primeiros amores, as paixões, as descobertas e a música do meu tempo e não de outro anterior. A hipótese de entrar numa cápsula de tempo nunca me entusiasmou, nem para o futuro e menos ainda para o passado.
Olho com bonomia os trintões pingados, da minha idade, a perseguirem nostálgicos e infantis as modas dos 80, a dançar furiosamente disco-sound, tornando os anos oitenta numa espécie de moda colectiva, esperando transmiti-la aos filhos como uma maldição. É certo que até houve boa música nos 80, mas também uma série de muito maus sub-produtos. Também gostei de ver o Live Aid em directo, ouvir a estreia de Russians ainda no tempo da cortina de ferro, ter presenciado o fim do muro de Berlim e sentir todas essa emoções. Mas como é normal o tempo não ficou parado aí. Os anos noventa trouxeram também extraordinários rasgos de genialidade, ouvíamos a esse tempo Nirvana e Abrunhosa, lutávamos contra as propinas, o império Cavaquista, buzinávamos nas pontes e protestávamos contra Chirac e os ensaios nucleares na polinésia francesa. Não foi, pois, um tempo vazio de românticas lutas e criação artística. Valer-nos-ia a pena refugiarmo-nos no passado dos outros quanto temos um tão rico passado atrás de nós? O futuro é sempre igual, as coisas desgastam-se, desmoronam-se, as fúrias acalmam-se, os guerreiros de antes casam-se, têm filhos e engordam. Kurt Cobain teve a decência de se matar aos 27, mantendo incólume o mito – cumprem-se agora 20 anos da edição de Nevermind, o bébé mergulhador deve ser hoje um jovem adulto que ainda não teve tempo de engordar e envelhecer. Tudo o resto é como sempre, já o magnífico poema “A esplanada” do Manuel António Pina o explicou, os nossos cafés de encantamento transformam-se em balcões de bancos ou supermercados, “Bob Dylan encheu-se de dinheiro” e o Bono também, Abrunhosa foi apanhado pelo Millenium e todos eles têm hoje ar de pais de família abastados, eu própria a meu tempo me converti às bocas-de-sino, entretanto novamente ultrapassadas. Mas ainda assim o passado é o passado, quem quiser voltar aos anos 50 para conhecer o Elvis não vai querer ficar por lá a envelhecer até à sua fase obesa.
Por mim prefiro o presente, a criar futuro todos os dias que há-de ser o passado com que algum tonto mais novo há-de ficar a fantasiar. Nós por cá continuamos a ouvir U2 e Abrunhosa, pois claro. Não por serem passado mas por continuarem a criar.