segunda-feira, outubro 21, 2013

Crónica de Segunda - De zero a zero.

Viagem mais ou menos literária entre Paulo Abrunhosa e Manuel Jorge Marmelo.  Ou de como a realidade vastas vezes ultrapassa a literatura.

Uma pessoa quando encorna que tem de escrever uma crónica, e à segunda-feira ainda por cima; uma pessoa quando empreende que melhor do que o som é o silêncio que se faz antes e depois dele, que melhor do que escrever untando uma folha de rabiscações é a mesma folha branquinha antes de estragar; uma pessoa quando cisma que um tema tão bom como outro qualquer para a crónica é encher uma folhinha de bisguentas dissertações proto-filosóficas sobre o valor da literatura face à realidade ou vice-versa que é como quem diz o valor de um zero amarelo, redondo e feliz, face aos múltiplos de mil com que nos atiram para a miséria e o desemprego e nos esfregam na cara a fome e degradação de tantos em nome da asséptica economia de mercados só para alguns… em suma, uma pessoa lixa-se. E escreve uma crónica assim.

No ano de 2001 morria Paulo Abrunhosa, deixando de si, a título póstumo, o livro “Diário de um dromedário”. Entre um vasto conjunto de poemas, muitos dos quais epigramáticos, surgia um, de seu nome “Manifesto”, que rezava assim:

“Até no meu mais pequeno gesto

se torna manifesto

que tudo o que quero

é ser um zero!”

O poema por si só, parece-me de resoluta força, porém se isso não bastasse, o autor resolveu fazer-lhe uma extensa nota de rodapé explicando, a quem não tivesse compreendido, a inexpugnável importância do zero.  Único número inteiro não natural, inventado pelos Hindus, é deveras excepcional congregando em si a capacidade de se elidir, se somado a outro numeral ou de extinguir e absorver nele o outro aquando das multiplicações. Enfatizava ainda que “Não é positivo, nem negativo. É zero.”, fazendo referência ao conceito milenar do nada Taoista. O zero como  “o início de tudo”.  Lembrei-me muito destas palavras quando deparei com o título do recém editado livro de contos de Manuel Jorge Marmelo, mais ainda quando li, no conto que dá nome ao livro, que o protagonista do mesmo resolvera desaparecer do mundo, fugindo da civilização para uma remota ilha cabo Verdiana, passando a viver sob um cobertor esburacado de onde observava o mundo em redor, lendo, escrevendo, tentando silenciar a sua voz interior e aspirando, com todas as suas forças a transformar-se “num redondo e encantador zero à esquerda”. Este redondo e, particularmente, “encantador” zero à esquerda fez-me mergulhar na tal nota de rodapé de Paulo Abrunhosa e no seu “Manifesto” que acima citei.

E vinha esta pobre alma, saindo de uma apresentação do “Zero à esquerda” de que vos falo, ainda meia arrelampada a matutar sobre a profundidade do zero literário – onde me revejo feliz e encantadoramente redonda, como o outro, sem sequer precisar de me esconder sob nenhum esburacado cobertor – sou detentora da mais fina capa de invisibilidade que me é, aliás, muito útil na maioria das situações , permitindo-me ler, escrever e atentar sobre o mundo sem fazer muito barulho de maneiras que ele, o mundo, dificilmente dá pela minha presença ou perde muito tempo a pensar sobre ela.

Mas dizia, vinha eu a atentar no zero literário quando, já na rua, ao avançarmos na direcção do carro – eu mais a minha comitiva – somos abordados por um personagem – eu aposto em Thomas Pynchon (ah não conhecem? Leiam e aprendam que eu não duro sempre!) – que celerado (e não, não é erro) suspendeu a marcha de um Audi, repito: um Audi, saltou do seu interior e, em manifesto desespero, rente às lágrimas, nos pediu “um euro”, tal e qual, para poder prosseguir viagem até ao seu destino: Gondomar, disse.

E, após a necessária contribuição  para a “viagem”, no seu mais lato sentido, do nosso “amigo”, fiquei-me feliz por perceber como a realidade ultrapassa tão largamente a literatura, sobretudo no que toca a zeros tão neutros quanto absorventes.