segunda-feira, setembro 26, 2011

Crónica de Segunda - As flores do caminho

Conheci as prímulas há muitos anos. Vieram parar cá a casa pela mão de minha Mãe que as comprou por lhes achar graça e lhe ter apetecido enfeitar uma pequena mesa com um vasinho com flores. Eram umas flores amarelas, singelas e engraçadinhas, em número de quatro ou cinco a despontando entre folharecas verdes e que pela noite exalavam um forte cheiro polínico. Plantazinha simplória, a trezentos paus (no tempo dos escudos sim, já foi mesmo há muitos anos) o vaso pequeno. O meu namorado dessa época cruzou-se com elas e riu-se, dizia ele que aquilo eram “flores do caminho”, coisitas banais que havia aos pontapés pela terra dele. Rimo-nos disso, tornou-se por algum tempo uma espécie de pequena piada com a qual nos picávamos, ele a desdenhar da plantinha e eu a elogiar-lhe a beleza como se nenhuma outra flor fosse mais meritória. Nenhum dos dois o fazia com particular convicção, era apenas uma brincadeira com que nos entretínhamos e que esquecemos mal as flores morreram, alguns meses depois.
Agora, tantos anos passados, lembrei-me delas, das prímulas, sabe-se lá porquê. Fui eu quem, empenhadamente, descobriu o nome das pobres, de outra forma seriam apenas as flores amarelas, mas ao encontrar-lhes o nome próprio – prímulas – ofereci-lhes uma comunidades de pertença e uma personalidade, uma excelência que de outra maneira nunca teriam tido. Foi assim que me deitei a pensar na importância que o nosso nome de família nos traz, não tanto pela sua proveniência – se se trata de uma família aristocrática ou um nome comezinho e banal de zé ninguém – mas apenas pela sua existência. A partir do momento em que temos um nome passamos a ser gente, a ter personalidade, como que ganhamos espessura, volume de gente. Acontece isso sobretudo com os nomes próprios e pelos quais habitualmente respondemos, senão sempre, pelo menos na intimidade. Se nos trocam o nome é como se nos trocassem também, deixamos de ser nós, passamos a ser uma existência inventada ou contrariada, somos e não somos. E isso sempre acontece quando nos chamam pelo nome errado ou quando não são capazes de nos nomear, nesse último formato passamos a ser uma coisa, somos amorfos – “ó coisinha!” como alguns chamam aos outros que não sabem ou não querem nomear. Já o nome de família reporta-nos mais a um clã, passamos a ser não apenas um mas uma parte de um todo, ainda que o nosso todo possa ser um todo fragmentado, disfuncional, às vezes até incomodo, se somos Silva podemos nada querer com o Pai ou com a Mãe, podemos ter-nos perdido dos restantes irmãos por pouco ou nada nos ligar, mas liga-nos o nome, se somos Silva é porque não somos sós e há outros Silvas como nós – isto aqui rimou ou foi de mim? Qualquer dia escrevo um poema – daqueles com rima, métrica e tudo! (e pontos de exclamação, amén.)
Tudo, enfim, por causa das prímulas, as discretas flores-do-caminho das quais agora tive saudades. Por um momento pareceu-me até sentir o seu nardo, penetrando pela noite, a entrar-me nas narinas. Ilusão olfactiva, apenas. As prímulas e sua metáfora das flores-do-caminho. Enquanto vivas sobre a minha mesa eram, para mim, as prímulas, que eram as minhas flores. Outros fossem os olhos e seriam apenas rasteiras flores-do-caminho, sem uso, prontas a ser pontapeadas pelos transeuntes. Gosto de pensar que me cruzei pelos caminhos com algumas flores que guardei em canteiro, regando-as e tornando-as tão prímulas como quaisquer outras, até que se murchassem – destino final de flores tão frágeis. Outras despontarão, noutros caminhos que não o meu.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Mais Tarde

Quando voltares
já não estarei,
terei partido em busca de mim
pelas marés,
levando comigo o restolho
a arrastá-lo com os pés.

Quando voltares
o meu lugar será vazio,
musgo e vento em meu lugar,
ainda que te lembres como era
antes de partir
nada encontrarás
de mim o que recordar.

Quando voltares
ainda o sino, sinalizando o tempo,
hora após hora,
o lento piano a acordar memórias de antanho,
perdidas tão de nós
como antes fôramos perto.

Quando voltares
talvez encontres ainda o vaso e as flores,
um canteiro seco, por regar,
planta que deixaste morrer por te partires.

Quando voltares
acharás lugar para ficar
de novo também as mesmas ruas,
os mesmos pequenos lugares
de onde nunca sentiste que chegaste a partir,
nada em ti sentirá diferente
e não estará, apenas eu
não estarei lá.

Numa nuvem de tempo,
limparás o cotão e a fuligem
depositadas no lugar de onde partiste.

Quando voltares hás-de,
enfim, permanecer, apenas eu
já não estarei,
terei partido bem antes,

sem esperar para te ver.

segunda-feira, setembro 19, 2011

Crónica de Segunda - Coisas irritantes, ou a reabilitação das sms de Natal

A braços com a crónica e sem tema para ela, resolvi mergulhar naquelas coisas que nos irritam, mesmo naqueles, ou sobretudo nesses, de quem gostamos, como os amigos.
Acontece-me a mim e a quase todos, pelo Natal e Ano Novo uma inundação telefónica de mensagens de gente que mal conhecemos e outros que nos são próximos com os votos do costume em mensagem mais ou menos produzida mas que, em geral, soa a tudo menos pessoal. Há quem se irrite profundamente com esta prática. Pessoalmente não a considero assim tão má. Tem o inconveniente do telemóvel que apita a toda a hora mas se o pusermos em silêncio torna-se muito mais suportável. É verdade que me é algo indiferente se a tia da prima da porteira que ficou com o meu número por em tempos me ter cravado uma receita de aspirina me envia votos de um ano cheio das melhores coisas, mas sempre seria pior que essa mesma pessoa me desejasse uma caganeira ou coisa quejanda. Mais frustrante é percebermos que a nossa prima preferida, o cunhado ou o nosso irmão nos enviam a mesma exacta mensagem, suspeitando nós que foi reencaminhada da mesma tia da prima do porteiro. Mas verdade, verdadinha, por menos original e impessoal que seja a mensagem que nos enviam há-de querer dizer que a criatura em causa, seja lá ela quem for, ao passar a lista de ilustres do telemóvel, se lembrou de nós e, seja por verdadeira amizade ainda que às vezes pouco alimentada ou apenas por respeito, achou que merecíamos ser carimbados com a natalícia sms. Portanto não acho mal, e acho pior quando a mensagem pré-formatada vem dos íntimos e dos amigos, não porque não goste do contacto, ainda que apenas virtual, mas por achar que aos amigos fica mais bonito dar algo de pessoal, algo que os faça perceber que mais do que correr a lista, pensamos sobre eles e não apenas neles.
Vem esta reabilitação, quase apologética, das pobres sms decembrinas a propósito de algo que me irrita muito mais, mas muito mais, tanto assim que vem sempre de gente a quem chamo amigos e a quem estou afectivamente ligada. Ao contrário dos vagos conhecidos e gente de quem já nem nos lembramos, ocorre-me às vezes ligar a amigos com quem não estou há algum tempo para ouvir a suas vozes, trocar cromos e apontamentos de actualidade, sobretudo aquela que não interessa a ninguém, ou mesmo discutir a meteorologia. O que me irrita perguntará o leitor já intrigado? Aquele amigo – digo amigo porque me parece que isto é um hábito masculino, não me recordo amigas que me façam este desplante – que no início, no meio ou no fim das conversas, sejam das longas ou das de “olá e adeus”, prometem/ameaçam: “temos de nos encontrar” ou “temos de ir lanchar” ou outra similar afirmação, por vezes encimada de ponto exclamativo e sempre ameaçando acontecer na semana seguinte – nunca na semana em causa – promessa, naturalmente, a esquecer ainda durante aquela semana. Além de ser uma coisa irritante, em qualquer circunstância, sempre que tal me acontece tem o dom de me magoar, de me espetar uma faca no peito e fazer pensar “onde é que eu tinha a cabeça para ligar a este animal?”, fazendo-me depois, nos dias em que tenho tempo para dar largas ao pensamento, ir mais longe e chegar a questões do tipo “mas eu sou amiga desta pessoa? Ou melhor, esta pessoa é minha amiga?” – nítidos erros de casting os “amigos” que acham que quando lhes ligamos, ao invés do colo e ternura que se encontra na voz dos que amamos a contar as fresquíssimas novidades dos 3 meses em que não falamos, preferimos uma promessa tonta de um encontro que nunca existirá para pôr em dia a tal conversa decerto agora com 3 anos de atraso. A brincar, a brincar, ficam reduzidos a dois telefonemas por ano, nos aniversários e no Natal… talvez no Natal uma sms, daquelas assim originais – votos de um Natal feliz para si e para os que mais ama.

segunda-feira, setembro 12, 2011

Crónica de Segunda -11 de Setembro... de 2002










Sei exactamente onde estava no 11 de Setembro de 2002, um ano depois do fatídico atentado às torres gémeas. Veio-me esta memória, não devido à comemoração dos 10 anos do mesmo atentado mas após visionar o DVD de um concerto ao vivo de Sting em Berlim e de ter sentido uma irreprimível vontade de lá voltar e de lá ter estado, no concerto.
Era em Berlim que estava no 11 de Setembro de 2002, sentada no lindíssimo Café Einstein em plena Unter den Linden, de volta de um appfelestrudel, mesmo ao ladinho da Embaixada dos Estado Unidos, pormenor que só havia de descobrir quando saí da confeitaria. Provavelmente o sítio menos aconselhável para se estar em Berlim um ano depois do atentado. Porém o que me fez tornar a Berlim e o conduziu para dentro da crónica é a memória que me ficou do lugar. Lembro-me de ter partido para Berlim com vontade de fugir de mim e talvez assim me reencontrar. Tal veio a acontecer. Antes de partir liguei a um amigo que sabia ter lá estado antes do muro ser abatido e pedi-lhe “diz-me o que devo ver em Berlim”, tempo perdido, embrulhado nos difíceis nomes alemães língua que nenhum dos dois dominava fiquei-me apenas com um nome na memória por me ser fácil recordar – Alexander Platz, e estive lá, junto à enorme torre da TV e em Potsdamer Platz e numa quantidade de outros lugares impronunciáveis.
Recordo chegar a Berlim e comer salsichas numa esplanada, e passear de barco do Spree, recordo o metro de Berlim S-Banh de superfície e U-Banh enterrado, como o do Porto. Chegando a Berlim impressionou-me o traço no chão marcando o lugar onde antes estivera o muro e mais do que o Checkpoint Charlie quis visitar a Eastside galery onde permanece uma parte do muro. Há uma memória longa de guerra, uma cor pardacenta espalhada por parte da cidade. Lembro ainda aquilo que mais me marcou em Berlim, o monumento aos mortos de todas as guerras – uma mãe, Pietá ao centro de uma abóbada aberta ao exterior, onde chove, neva e entra o sol, conforme os humores meteorológicos, em volta a escuridão, e flores que pais e mães deixam em memória dos seus que partiram, um lugar lúgubre e húmido, por mim não irei esquecer.
Há depois um senhor alemão (2011) comissário para a Energia, um tal Oettinger, que acha que os países europeus com excesso de défice deveriam ver as suas bandeiras colocadas a meia haste nos edifícios comunitários! Berlim é uma cidade a meia haste, a Igreja da Memória semi-destruida pelos bombardeamentos, nunca recuperada, para nos recordar a nossa fragilidade e aquilo que não se deve repetir nunca mais. Espero que o Sr Oettinger passe por Berlim um destes dias.

segunda-feira, setembro 05, 2011

Crónica de Segunda - Uma crónica de primeira!

A crónica de segunda de hoje é de primeira. Primeira qualidade, não da crónica, enfermando da autora do costume e por isso acomodada à segunda-feira e com ela apelidada de segunda, mas pelo tema que hoje a preenche que é gente de primeira.
Ainda ontem me desgastava tentando vislumbrar uma luz que me levasse a escrever sobre outro tema que não fosse a crise que nos é imposta – isto era um trocadilho – as inconsistências do primeiro ministro do antes e depois das eleições, os desmandos, disparates e dislates do “buraco negro” da Madeira ou pior ainda sobre as minhas próprias inconsistências proto-filosóficas sobre o mundo em geral e o meu pequeno reduto em particular.
Devo então ao Google a ideia para esta crónica já que ao abri-lo deparei com uma bonita homenagem a Freddie Mercury que faria hoje, nesta segunda, 65 anos. Veio a calhar o Google e Farookh Bulsara (nome real do zanzibariano Freddie) por me trazer inteiro um dos belos exemplares de um homem feito de música.
No mundo da música há entre os músicos os executantes, os iniciados, os talentosos, os que não têm talento nenhum, os encostados, os esforçados e há também uma “raça” à parte de gente de primeira, gente única, rara e genial, são os homens feitos de música – Freddie Mercury era um deles. Os homens feitos de música respiram música, transpiram música, são música eles próprios, como algo de intangível mas que se sente, como uma luz que transportem, algo mais alto. A música não é para eles profissão senão de fé, não é uma obrigação mas uma imperiosidade, são eles próprios uma espécie de poema itinerante.
Os homens feitos de música conhecem-se no palco, pela aura que emitem, pelos gestos que enfeitiçam o público e o fazem render em moles imensas vergadas à sua magia, transportando-o ao sonho.
Freddie tinha tudo isto de sobra, viveu a vida das rock stars sem conhecer, dizia-o ele, a constância afectiva, talvez compensasse essa ausência em música. Morreu-nos com apenas 45 anos, com a dignidade possível a uma rock star vítima de SIDA, serenamente na sua casa, 24 horas depois de tornar pública a doença, imediatamente antes dos abutres mediáticos terem oportunidade de lhe abocanharem o corpo. E ele tinha tanta, morreu com tanta… música no corpo.
God bless you Freddie, wherever you may be.