segunda-feira, setembro 24, 2012

Crónica de Segunda - Heroísmo


Permiti-me hoje percorrer a pé, desde lá de trás, a rua do Heroísmo. Há muito tempo que não o fazia, faz-me sempre pena. Pena ou melancolia, nunca sei bem, creio que padeço disso desde o tempo em que deixei o liceu e com isso aquela mesma zona como âncora. Mas o tempo fez enriquecer a sensação. A mistura de tudo o que desapareceu e de tudo o que sobrou. O que desapareceu e deixa saudade e o que sobrou quase tudo decrépito, cinzento e bafiento, uma rua que tem laivos de cidade fantasma dentro da cidade, casas ao abandono, lugares cheios de vazio.

O palacete onde em tempos estudei tinha sempre o portão fechado, acho que havia uma tabela de basquete pendurada nele e, se bem me lembro, ninguém lá jogava nada, no meu tempo, pelo menos. Agora os portões estão abertos, as marcações do chão desapareceram e lá dentro um carro de polícia. É da polícia aquilo agora. Questiono-me, será que as escadas que levam ao último piso ainda rangem ameaçando ruir? Será que quando as portas se fecham um ou dois agentes tentam a sorte na tabela de basquete? Será que os corredores ainda se lembram dos beijos, das estórias, da história, da geografia, da biologia e do inglês? Avanço mais e desvio o olhar para Nova Sintra, de novo me parece ouvir o comboio ao longe e sentir o vento embiocado nas folhas das árvores nas Águas. Os furos das aulas – feriados, chamávamos-lhes – serviam também para o, já à época melancólico, tour ao espreita comboios – pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra lá vinham eles de não sei de onde, lembrando-me o Verão, que a mim era o que me lembravam. “Está a dar entrada na linha número dois o comboio regional com destino a Coimbra. Este comboio tem paragem em todas as estações e apeadeiros”.  

Estugo o passo, os cafés onde parei, talvez comprasse ali o jornal mas é domingo, está fechado. Tudo é agora diferente e igualmente parado. Uma sensação de abandono, de orfandade, um vidro partido dá de esguelha para uma cave e engrandece o cheiro a vazio, ups - bafio. O fotógrafo, o barbeiro, o horto, adiante o STOP já morto e enterrado várias vezes, onde eu comprava discos – havia discos no meu tempo, sou tão antiga! – e ia ao cinema e outras tantas coisas de que mal me lembra já.

Na esquina o museu que antes foi sede da PIDE, embora sabendo que o nome deriva das lutas liberais do D. Pedro contra o D. Miguel, penso que Heroísmo assenta bem ao nome da rua por ali terem estado prisioneiros os heróis que lutavam pela liberdade. Era ali que o Gomes Ferreira vinha visitar o filho preso e dali partiu para alguns poemas. A Virgínia de Moura em estátua para que não esqueçamos o cravo de pedra. Conheço um PIDE, quer dizer, um ex-PIDE. Dizem que o foi por pouco tempo, que não se via a torturar e que quis saír, ainda assim não nutro por ele qualquer simpatia. Há dias diz-me minha Mãe – repara que ele agora anda sempre de máquina fotográfica, achas que andará a espiar o povo? – disparate, anda agora! Um reformado a entreter-se com fotografias, eu mesma que trago quase sempre uma digital. Pelo sim, pelo não, passo por largo, bem largo.

Frente ao cemitério um homem conduz pela trela, melhor seria dizer que era ele o conduzido, dois cães de grande porte – um lavrador e um outro ainda maior, de raça incerta, provável cruzamento com serra da estrela. Apesar do tamanho tinham um ar pacífico. Um gato cinzento, listado, esgueira-se sob uma barraca de flores, não vá o diabo tecê-las… heroísmo.

Heroísmo, heroísmo o tanas! Enquanto me lembrar da dor que me dá não voltarei a passar aqui tão cedo! Esgueiro-me sob uma barraca de flores ou outra coisa qualquer onde lograr caber para me esconder.

segunda-feira, setembro 03, 2012

Crónica de Segunda - Uma derradeira crónica de Verão


Que ainda agora era Agosto e está calor e há quem esteja de férias e não lhe apeteça pensar. Sobretudo há quem não queira, frente a uma paisagem idílica de mar ao fundo, ser lembrado dos impostos, dos subsídios que não há, dos cortes nos ordenados, dos malefícios da troika, do desemprego que aumenta e do país que se afunda, condenado que está ao fracasso económico e social, sucumbindo em silêncio qual doente terminal, respirando ruidosamente, com dificuldade acrescida até ao suspiro final. Há que respeitar, pois, estes momentos finais de sossego e paz, amanhã será outro dia e a vida real há-de inundar-nos até, também nós, não conseguirmos mais respirar.

Há que dar balanço à cronica e oferecer alguma paz de fim-de-verão aos leitores que esperam ainda pelas esplanadas os raios últimos da ilusão estival.  Avanço então pela crónica como pelo mar, dando a cada braçada de palavras uma rajada de azul, como se as gaivotas que esbracejam aqui , junto de onde estou, fossem de facto gaivotas de maresia e não estas aves infectas, rapinares, que cobrem de dejectos os monumentos e as ruas e se alimentam do lixo que, displicentes, espalhamos pela cidade.

Tento então amordaçar a crónica, não bem a crónica, mas a realidade que esperneia dentro dela. Há que anestesia-la, metê-la a correntes, não a deixar passar, até que o estio se desencontre e deixe que o frio nos envolva e nos devolva o Outono e a vida real.

Pouso a caneta, olhos no mar, pausa, retomo a escrita, sinto o vazio, torno a olhar o mar… ou a memória dos teus olhos a olhar o mar dentro de mim.