segunda-feira, dezembro 19, 2011

Crónica de Segunda - "Crónica a uma folha em branco"

Tenho esta coisa com as páginas em branco. Olho-as e elas começam a bulir comigo e eu a bulir com elas. Depois é um desatar de palavras a escorregar pelo papel fora e a folha a ficar escrita, riscada a preto, feia, com a minha letra feia, e assim de ar sujo. Se ao menos eu tivesse uma caligrafia bonita, redondinha e pura, com pontinhos nos is iguaizinhos a bolinhas bonitinhas, engraçadinhas, a imitar corações. Mas nada disso, é feia, meia oblíqua e incerta, toda escrita às pressas, como quem foge ou não quer ser percebida.
Depois é todo um avolumar de signos e sentidos, de estórias e histórias, ideias e objectos, planos e pensamentos, coisas que eu não saberia arrumar sem as palavras. Fico então pasmada a perceber para que servem. Servem sobretudo para encher páginas – como esta – e servem para nos iludir que o abstracto que há em nós pode ser objectivado com estes conjuntos de letras. E eu às vezes a querer ver-me livre delas, e das coisas objectivas e ser só coisas vagas, indefinidas, às vezes mesmo sem sentido (para o que serve o sentido mesmo?). Eu a querer fugir e pensar, sei lá, música em vez de palavras, sentir perfumes em vez das palavras que tantas vezes picam, como cactos, agulhas, coisas irritantes que não nos deixam descansar o raio das palavras. E eu a vê-las a crescer na folha antes em branco, tão purinha, tão capaz de ser ainda qualquer coisa, antes de eu a pisar com as minhas palavras e a minha letra feia, escrita a preto, ainda por cima – era a caneta que tinha – se ao menos fosse a azul, sempre ficava mais bonitinha. Menos feia, quero eu dizer, quase se afiguraria a uma pintura abstracta, um desenho mais propriamente. Gosto das bic cristal azuis e parkers, deslizam bem, ajudam-me a sujar a folha com estilo, sem me emperrar as ideias.
Santo Deus, olha tantas! Tantas palavras já aqui plasmadas. Tanto papel sujo, podia ter sido uma folha tão bonita, com desenhos, por exemplo, se eu soubesse desenhar, ou notas de música, uma pauta, se eu percebesse alguma coisa de música, até podia ter sido um belo objecto literário, ter-lhe nascido no seu interior um romance, um conto, um poema, um previsível prémio nobel da Literatura. Ou, pelo menos, uma carta de amor, mesmo que desastrada, uma que dissesse “amo-te” a tremer na linha, de letras embargadas, mesmo que fosse ridícula, como as que Ofélia recebia do Fernando. Ridícula como toda a carta de amor deve ser, como todo o Amor o é, também.

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Crónica de Segunda - "Um clássico da literatura"

Nada melhor no regresso das crónicas do que dissertar sobre os clássicos da literatura. Vem isto a propósito de não ter tema sobre o qual falar e pretender servir-me de uma conversa que ouvi por acidente num daqueles cafés em que as mesas são tão próximas que é difícil não ficarmos por dentro da conversa dos vizinhos do lado. Calhou que na mesa junto à minha duas jovens conversavam sobre as suas vidinhas e embora em tom discreto veio parar ao meio da minha leitura de jornal a seguinte pérola “só gostava de ter um dom que me fizesse perceber o que ele sente, ou o que fez de tudo o que antes sentia”. É claro que depressa me desliguei da conversa entre as duas que pouco ou nada me interessava para pôr o neurónio a viajar nas ondas da parvoíce. Pus-me a imaginar o mais velho e batido clássico da literatura, do indivíduo que sai para comprar tabaco e nunca mais regressa deixando a angústia do regresso em quem fica. Tudo isso seguido de imagens fílmicas de alguém que desce uma rua, mesmo diante dos nossos olhos e no primeiro cruzamento desvia o percurso numa esquina e assim desaparece, do nosso olhar e da nossa mente, depressa substituída a sua imagem por outra qualquer que melhor nos distraia. Assim vamos fazendo o nosso percurso tornando-nos, face aos outros, quantas vezes o mesmo clássico da literatura, desaparecendo quando íamos comprar tabaco ainda que, ou sobretudo se, não formos fumadores. São inúmeros os poderes da invisibilidade, cómodos, simpáticos, muito uteis para a sobrevivência longe dos tão difíceis afectos. Então não é melhor sermos nuvens, coisas etéreas que desaparecem nas esquinas, um não-sei-quê de poético e ao mesmo tempo trágico, do que ficar a matutar tristemente no que o outro há-de ter ficado a pensar ou a sentir? Foi antes ou depois do maço de tabaco? O amor eterno (enquanto dura) é maior ou menor, tem mais ou menos eternidade quando nos afastamos? É ou não verdade que para sempre só é real quando tudo acaba? Pensem nisso, entretanto vou ali comprar tabaco. Volto já.