segunda-feira, julho 25, 2011

Crónica de Segunda - O saxofone da minha memória

Ofereceram-me um marcador de páginas em forma de saxofone. Agora entremeado no livro que leio pausei a pensar sobre ele. Não bem ele mas sobre saxofones e a minha relação idílica com eles, com o seu som, com a poética do jazz em geral. Sempre hei-de associar a minha ideia de jazz a uma imagem que julgo roubada a um filme qualquer, que não saberia identificar, mas que me há-de ter ficado gravada bem fundo a ponto de não me esquecer dela. Há a imagem da silhueta de um saxofonista numa janela em Nova Iorque quando a câmara se afasta lentamente filmando os neons de Times Square fechando o plano.
Na minha pré-adolescência, por alturas do Verão, no tempo em que o Verão eram noites quentes de se abafar à noite em casa, a televisão passava o festival de jazz do Hot Club, coisa que eu vagamente desprezava, achava valentíssima seca e trocava de muito bom grado por uma passeata pela cidade, de carro ou pé, assim a família me levasse. Pelos meus quinze anos tive o primeiro grande impacto de encontro ao jazz, embeiçada por um rapaz uns três anos mais velho (adultíssimo do alto dos seus 18) ouvi-o dizer que gostava de jazz – “Ah, jazz não gosto” – disse eu – “Tu não gostas de jazz?” – perguntou ele incrédulo, perdi portanto a minha grande oportunidade de estar calada – “Não gosto de jazz mas gosto de Rui Veloso, serve?” – pensei, e não pensei muito mais sobre isso. É claro que a nossa história não foi a lado nenhum (nem tenho pena) mas o jazz lá foi entrando em mim de mansinho, junto com a maturidade, achava eu nalguma altura, que hoje sobre maturidade não acho nada e sobre jazz apenas sei o que sinto quando o ouço, não me peçam teorias, nem nomes sonantes, nem coisa nenhuma mais para além de sentir.
Entra aí em cheio e em força o saxofone, instrumento pelo qual sempre nutri afeição, é sensual, é doce e agressivo ao mesmo tempo, é especial. Vai daí olhava eu o meu saxofone dourado na palma da mão e pensava num episódio passado há uns bons dez anos. Conheci de forma algo fortuita, um saxofonista que muito apreciava, e ainda aprecio, foi uma coisa casual e da qual eu não estava à espera e o que melhor me lembro foi de me ter levantado da cadeira onde estava sentada quando ele entrou na sala e sentir-me quase impelida a fazer-lhe uma vénia, que não fiz. Chegamos a conversar sobre alguma banalidade por alguns minutos, percebi, como é normal, que ele, como todos os artistas com quem temos a infelicidade de quebrar a barreira que separa o público dos que estão no palco, é uma pessoa banal, com pele, carne, sangue a pulsar nas veias e que certamente, embora a nossa curta conversa não chegasse a nada disso, ama, deseja, chora e ri como qualquer mortal, como o nosso vizinho da frente.
Na verdade aquilo em que eu pensava era um solo longo, longo, longo, interminável deixando-me quase em apneia como se o solo fosse meu, eu já de pé, eu sem respirar para não ferir a música e ele continuava, agora deitado em decúbito dorsal sobre o palco, continuava, continuava, como se não fosse terminar nunca, agora era arrastado pelos pés e continuava, continuava, era em tudo isto que eu pensava quando o conheci. Há algum tempo “amiguei-o” no facebook, juntei-o à longa galeria de desconhecidos bonitos de colar na lapela. De qualquer forma a única coisa que me interessa é aquele solo longo, longo, até me ferir por dentro, interminável e ao olhar o meu saxofone metálico de marcar páginas marco aquele longuíssimo solo, a arrastar-se pelo chão, até culminar num também interminável aplauso, a apoteose de um público embriagado em música.

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