segunda-feira, junho 24, 2013

Crónica de Segunda - Uma crónica de fim

Eu sei que já passaram muitos anos mas há memórias que nunca mais nos largam da mão, coisas que ficam, a lembrança de um cheiro, alguma coisa que nos faz sentir mais fundo. Era madrugada, não consigo precisar a hora, mas era madrugada bem alta. Dali o S. João apenas um eco de martelos ao fundo da minha tristeza, era tudo escuro, as estradas desertas. Percebi que nunca mais, nunca mais o pim, pim, pim, infernalmente adorável de gente em rodopio, feliz, louca, pelas ruas, nunca mais o cheiro da sardinha, a alho-porro, o riso e gritaria, nunca mais. Tudo porque, no fundo da escura madrugada que se abria, o meu caminho era o do fim. Os dias do fim são quentes, a noite era quente como quentes eram ainda as noites naquele tempo e porém o frio, dentro era o frio. Acordaram-me e eu tremia, tremia sempre sem conseguir parar e eu queria, eu queria parar de tremer, eu queria ver-te, já que era a ultima vez, ainda que já não me visses mas eu queria estar e estive, quase até ao fim, até a um estertor que me assustou, uma regurgitação final, um passo atrás que não perdoo até hoje e antes disso qualquer coisa que me tentaste dizer e eu não percebi.
Depois foi encontrar o caminho do regresso a casa, o táxi, os martelos ao fundo, uma noite de lágrimas quase secas, ainda incertas. Finalmente acabou, a angústia, o sofrimento, os dias quentes insuportáveis, as dores, a falta de ar, as promessas, as mentiras, acabou tudo, já podemos ser normais outra vez e chorar se apetecer chorar, já não temos de te enganar que vais melhorar, nem acreditar em todas essas mentiras que deliberadamente te dissemos.
A manhã de S. João era a surreal ressaca da casa mortuária onde não quis ver-te por ter a certeza que já não eras tu, da certidão de óbito, da empresa funerária, uma fila de caixões perfilados e o dono mostrando-me à direita e à esquerda as qualidades e preços de cada um enquanto eu percorria como um general observando as tropas, prestes a escolher o soldado a desmobilizar. Depois a escolha do texto, os preços do jornal – a família tem o doloroso dever de informar que – e a inenarrável história da fotografia. Se tinha fotografia? Sim, tinha. O homem a colocá-la sob o cinzeiro atestado que servia de pisa-papeis – mas esta gente não entende? Aquele gente não entendia que o que ali deixava de penhor era a tua fotografia, a mais resistente memória do teu olhar, do teu sorriso, aquilo não era um bilhete de autocarro para ficar defunto debaixo do cinzeiro! Devolvi-me a fotografia – fique antes com o BI – disse.
E a mulher gorda da funerária, com o seu vestido azul escuro de pintinhas brancas, que insistia em cumprimentar-me com dois beijos e eu que insistia em fugir, afastar-me.
Não a conheço, senhora, largue-me, tomara eu nunca a ter conhecido, percebe?
Lá fora a cidade entorpecida dormia a noite festiva. Abençoada, ao menos estava em silêncio.

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