Permiti-me hoje percorrer a pé,
desde lá de trás, a rua do Heroísmo. Há muito tempo que não o fazia, faz-me
sempre pena. Pena ou melancolia, nunca sei bem, creio que padeço disso desde o
tempo em que deixei o liceu e com isso aquela mesma zona como âncora. Mas o
tempo fez enriquecer a sensação. A mistura de tudo o que desapareceu e de tudo
o que sobrou. O que desapareceu e deixa saudade e o que sobrou quase tudo
decrépito, cinzento e bafiento, uma rua que tem laivos de cidade fantasma
dentro da cidade, casas ao abandono, lugares cheios de vazio.
O palacete onde em tempos estudei
tinha sempre o portão fechado, acho que havia uma tabela de basquete pendurada
nele e, se bem me lembro, ninguém lá jogava nada, no meu tempo, pelo menos.
Agora os portões estão abertos, as marcações do chão desapareceram e lá dentro
um carro de polícia. É da polícia aquilo agora. Questiono-me, será que as
escadas que levam ao último piso ainda rangem ameaçando ruir? Será que quando
as portas se fecham um ou dois agentes tentam a sorte na tabela de basquete?
Será que os corredores ainda se lembram dos beijos, das estórias, da história,
da geografia, da biologia e do inglês? Avanço mais e desvio o olhar para Nova
Sintra, de novo me parece ouvir o comboio ao longe e sentir o vento embiocado
nas folhas das árvores nas Águas. Os furos das aulas – feriados,
chamávamos-lhes – serviam também para o, já à época melancólico, tour ao
espreita comboios – pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra lá vinham eles de não
sei de onde, lembrando-me o Verão, que a mim era o que me lembravam. “Está a dar
entrada na linha número dois o comboio regional com destino a Coimbra. Este
comboio tem paragem em todas as estações e apeadeiros”.
Estugo o passo, os cafés onde
parei, talvez comprasse ali o jornal mas é domingo, está fechado. Tudo é agora
diferente e igualmente parado. Uma sensação de abandono, de orfandade, um vidro
partido dá de esguelha para uma cave e engrandece o cheiro a vazio, ups - bafio.
O fotógrafo, o barbeiro, o horto, adiante o STOP já morto e enterrado várias
vezes, onde eu comprava discos – havia discos no meu tempo, sou tão antiga! – e
ia ao cinema e outras tantas coisas de que mal me lembra já.
Na esquina o museu que antes foi
sede da PIDE, embora sabendo que o nome deriva das lutas liberais do D. Pedro
contra o D. Miguel, penso que Heroísmo assenta bem ao nome da rua por ali terem
estado prisioneiros os heróis que lutavam pela liberdade. Era ali que o Gomes
Ferreira vinha visitar o filho preso e dali partiu para alguns poemas. A
Virgínia de Moura em estátua para que não esqueçamos o cravo de pedra. Conheço
um PIDE, quer dizer, um ex-PIDE. Dizem que o foi por pouco tempo, que não se
via a torturar e que quis saír, ainda assim não nutro por ele qualquer simpatia.
Há dias diz-me minha Mãe – repara que ele agora anda sempre de máquina
fotográfica, achas que andará a espiar o povo? – disparate, anda agora! Um
reformado a entreter-se com fotografias, eu mesma que trago quase sempre uma
digital. Pelo sim, pelo não, passo por largo, bem largo.
Frente ao cemitério um homem
conduz pela trela, melhor seria dizer que era ele o conduzido, dois cães de
grande porte – um lavrador e um outro ainda maior, de raça incerta, provável
cruzamento com serra da estrela. Apesar do tamanho tinham um ar pacífico. Um
gato cinzento, listado, esgueira-se sob uma barraca de flores, não vá o diabo
tecê-las… heroísmo.
Heroísmo, heroísmo o tanas!
Enquanto me lembrar da dor que me dá não voltarei a passar aqui tão cedo!
Esgueiro-me sob uma barraca de flores ou outra coisa qualquer onde lograr caber
para me esconder.
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