domingo, agosto 15, 2010

Crónicas da Cidade Cinzenta

Tentativa de esgotar-me por dentro em viagem por caminhos dentro de mim.

Aprendi com Enrique Vila Matas, numa sua crónica em “Da cidade nervosa” que George Perec havia escrito “Tentativa de esgotar um lugar parisiense” tendo como lugar de observação o Café dela Mairie. Seguindo-lhe a ideia o próprio Vila Matas se apostou em repeti-lo, tentando “esgotar” a Praça Rovira em Barcelona. Procuravam descrever exaustivamente tudo o que, naqueles lugares já amplamente inventariados de estátuas, igrejas e monumentos, “se passa quando não se passa nada. Só o tempo, as pessoas, os carros, as ruas.”
Pareceu-me bem e foi a pensar nisto que dei por mim a “esgotar” não um lugar de onde me colocasse a observar o mundo mas os vários lugares por onde passei (escrevo o relato à posteriori) de um caminho antigo que percorri na vida umas mil vezes, ora de ida, ora de regresso, ora de passeio, ora de passagem e, ultimamente, cada vez menos.
Estar ainda de férias no meio de Agosto e no Porto pode ser visto como uma bênção. As horas parecem mais compridas e as ruas mais largas. Lojas fechadas dão à cidade um ar sépia fantasmagórico. São poucas as hipóteses de encontrar as pessoas do costume nos lugares usuais, é como se de repente fizéssemos um passeio à nossa cidade sem ser na nossa cidade, como numa viagem ao tempo, como regressar a um país deserto.
Desço a Rua António Carneyro como numa viagem a mim mesma, por dentro da memória, eis-me de novo, na rua de sempre, mas noutro tempo que não o antigo, que não o presente, num tempo imaginado. Aproveito a sombra, espreito o pequeno café que mudou de nome, vazio, defunto, fechado até novas aulas. É uma da tarde. O “Pires de Lima”, construção maciça e feia de cimento armado em vários blocos, fechadíssimo para férias, nem vivalma. Mais abaixo o “Raínha”, meu velho liceu. Olho-o do outro lado da rua. Deixou de ser escola, é DREN. Pergunto-me a serventia agora de um pavilhão com ginásio, com mais do que uma sala, balneários, os laboratórios e anfiteatros de física, química e biologia, que uso lhes estará destinado, uma escola construída de raiz para o ser… Talvez essas zonas sejam agora uma montureira de papéis, como o jardim o é de silvas? Haverá funcionários para esgotar tanto espaço, tanta sala de aulas? Ou será este edifício como um enorme navio fantasma de ventre inchado mas vazio? Nunca lá entrei. A porta envidraçada foi reformulada, tem ar de repartição modernaça. A estátua da Raínha Santa que centrava o átrio, com flores no regaço (e onde alguém por vezes depositava rosas verdadeiras numa pequena jarra) desapareceu. A Raínha tem como dia litúrgico o mesmo do meu aniversário, era uma coincidência que me divertia – são rosas, senhor, são rosas – e agora o que são? E onde estão as rosas? O que diria disto o Rei Poeta D. Deniz? Abaixo ainda o “Raínha velho” que agora é Comando da PSP, suponho que melhor serviria à Polícia o ginásio e o espaço aberto, enfim, mas ei-los no velho edifício por fora muito pintado. Por dentro não conheço agora, mas aposto que a velha escada ainda range e num certo degrau – clack. Há este aspecto romântico e português que faz lembrar cenário de filmes – a polícia numa velha casa de tipo senhorial com escadas em madeira que rangem.
Adiante. Atravesso para o Heroísmo. Na esquina a “Estrela”, fechada. Continuo na direcção do Largo Soares dos Reis. À esquerda a “Cozinha do Manel”, fechada até tantos de Agosto, férias. Sempre que ali passo recordo não as vezes que lá jantei, o que comi, com quem estava ou o que se disse mas antes uma noite de Outubro em que entrei e saí (coisa tipo filme de espionagem barato), nem passei do balcão, mas à saída transportava um tesouro mágico nas mãos, apertando-o contra o peito e que guardo até hoje na gaveta da memória, há coisas que nunca se esquecem. Em frente o “Nova Sintra” fechado. A antiga residência/escritório de um Amigo devidamente desactivado, possivelmente para sempre, mais uma casa fantasma. Os cortinados já cinza-tule corridos, as portadas fechadas por trás deles, numa janela inferior – terá cave aquilo? – um vidro partido, algum lixo enfiado entre o vidro e a grade. Tive vontade de lhe tocar ao batente, a ver se alguma alma penada me responderia do outro lado. Abaixo ainda a defunta oficina/stand da Renault, fechada e abandonada há anos sem fim. A loja de fotografia fechada. Um barbeiro à antiga, fechado. Adiante o STOP, fantasma de centro comercial apagado, agora pintado de cores garridas. Stop 1 e Stop 2 – a primeira matiné sozinha – Lobijovem com Michael J. Fox e a filmografia do Tom Cruise – Top Gun, A cor do dinheiro e o que mais houvesse. Diz que agora é um armazém de bandas de garagem, um alfobre de talentos – pois será – visto de fora, as luzes apagadas nas lojas desaparecidas é bem um fantasma. Uma velha de perna arcada, saia rodada e puxo na cabeça entra decidida e vai manquelitando os primeiros degraus – punk rock, penso. O “Rei dos lanches”, fechado. Na esquina seguinte o Museu Militar, antiga sede da Pide, quantos lá não terão sido torturados até chibar ou morrer? Lembrei o José Gomes Ferreira a engolir poemas em seco quando ali veio visitar o filho. A seguir o cemitério, tenho lá jazigo, para que nunca me falte a velha rua de sempre quando eu própria me for desta para melhor. Tenho lá o meu Pai, não bem o meu Pai mas o que lhe resta dos ossos, desarticulados, sem carne, sem vida – aquilo não é o meu Pai, o meu Pai é a fotografia dos olhos iguais aos meus só que castanhos e maiores, quando muito o Pai é também as flores cobrindo a lápide, vivas e inteiras como ele era, vivo e inteiro, não aquele armazém de ossos fora do lugar, encaixotados. Na verdade nesta volta toda esta rua me parece já um longo cemitério de afectos, eu própria várias vezes morta – primeiro eu-criança, depois eu-adolescente, depois eu-adulta, eu, enfim, várias vezes morta dentro de mim.
Adiante. Atravesso o largo e sento-me na confeitaria. Venho cá menos vezes agora, fica-me menos à mão. Não peço nada, o Sr. Luís ainda se lembra – é café com adoçante, curto. É daqui que escrevo estas tolices antes que me arrefeça o café e a memória. Talvez fique aqui a fazer rodopiar o troco de moedas sobre a mesa.

2 comentários:

Rui Matos disse...

Tolices, pois então.
Tolices com um enorme efeito multiplicador no despertar de inúmeras das minhas memórias, algumas inertes, outras entretanto perdidas, Que bom levar com isso tudo na fronha de uma só vez. Grazie!! :))
Beijos!

Anónimo disse...

Esta Crónica
fez-me lembrar uma conversa ente "ti e mim" nos tempos da antiga tasca virtual, em que eu te disse 1 coisa, tu outra contradizendo-me; eu contrapondo. Tu argumentando e eu argumentando tb, e assim se finou sem se finar, uma conversa q deixou de ser conversa para se tornar num debate ou sei lá eu que nome dar áquilo...

Ficou-me na lembrança...só isso



*
(continua a "cronicar" e a partilhá-las:).
São textos belos demais para habitarem só as tuas algibeiras)



Nopia