sexta-feira, setembro 03, 2010

Crónicas da Cidade Cinzenta

Hypnos

Está um homem com o tronco curvado sobre a mesa, na mesma mesa onde antes esperei por ti.
Está um homem com o tronco curvado sobre a mesa onde repousam também vários papéis em seu redor. Ali na “praça da restauração” do centro comercial. A cabeça do homem toca uma das folhas, teria adormecido, é velho, usa um fato um pouco puído e junto à mão direita, também sobre a mesa, uma esferográfica que deve ter-se soltado de entre os dedos. O homem dorme, acho, curvado sobre as palavras, ou os números, sobre sabe-se lá que assunto. Talvez seja reformado – é velho – de volta das contas do imposto que alguém sem tempo confiou à sua sabedoria ou talvez trabalhe ainda, anos e anos e palavras ou números curvando-se sobre as folhas dispersas naquela ou noutras mesas e por isso se deixou adormecer, os anos pesando-lhe sobre o dorso, a caneta soltando-se-lhe dos dedos. Pago o meu café e sento-me na mesa em frente para o tomar. O homem dorme ainda, ou penso que dorme. As pessoas passam indiferentes, alguns olham-no outros nem isso. Os que o olham pensam como eu penso, que está a dormir, as outras não pensam no homem que se deixou adormecer, o dorso curvado sobre a mesa, a testa pousada no papel a esferográfica junto à mão direita, presa na mesa.
O homem dorme, ou penso que dorme. Talvez esteja morto e amanhã no jornal “Um homem morre enquanto organiza papeis” ou “Idoso encontrado morto na praça da restauração” e o velho será notícia e falarão sobre ele no dia seguinte, talvez até na televisão, o ar compungido do pivô do jornal “Um septuagenário, foi encontrado morto, ontem, no centro comercial”. Talvez expliquem dos papéis que o homem certamente antes retirara de dentro da velhíssima pasta de couro que está junto dele numa cadeira, uma pasta esboroada, castanha, muito gasta, o fecho aberto – tive uma pasta com um fecho assim nos meus tempos de escola e outra que em vez de um tinha dois, iguais e simétricos.
Talvez esteja morto, como também eu morri já várias vezes naquela mesma mesa do centro comercial, enquanto me sento e penso que tu, ou talvez já não tu mas a memória que guardo de ti ou tu como alguém muito parecido contigo mas não bem a mesma pessoa que guardo na memória, naquela mesma mesa, não morto mas vivo, olhando-me e sorrindo.
Tossiu, apalpou a mesa com ambas as mãos, o homem ergueu-se do seu torpor esfregando os olhos com a mão esquerda e com a direita apanhando da mesa a caneta. Recompôs a postura e endireitou os papéis. As pálpebras pesavam-lhe ainda, bem o percebi.
Suponho que eu e ele, o homem, havíamos de morrer ainda umas tantas vezes, ali mesmo naquela mesa onde antes esperei por ti.

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