Hoje a crónica viu-se atravessada
pela morte ou a ideia da morte. Enquanto buscava assunto nas comezinhas coisas
que nos rodeiam a notícia da morte o poeta António Ramos Rosa fez-se,
subitamente assunto. Desde logo pela tristeza que o desaparecimento de um poeta
com a sua estatura, a sua profundidade deixa entre os que gostam de poesia e
apreciavam o seu jogo de luz e sombras, o seu rigor na palavra, a sua
pungência. Depois porque o vazio que deixa lembra o vazio que outros da sua
geração e até mais novos têm deixado nos últimos anos. Começam a desaparecer os
velhos poetas e vamos ficando um pouco mais órfãos, deixados sós, sem
referências, um pouco à deriva, parece-me.
Quando se morre aos 88 e se está
frágil e doente é-se mais compreensivo com a morte, sabemos que nalguma altura
temos de partir e aos 88 parece menos mal que aos 50 ou aos 60 ou noutras
idades ainda mais jovens, mas a um poeta não devia ser dado morrer. Leio num
jornal que, já hospitalizado e muito frágil, ainda no dia da sua morte, Ramos
Rosa foi capaz de escrever o nome da sua mulher e da sua filha e esta sussurrou-lhe
ao ouvido um seu poema “Estou vivo e
escrevo sol” e foi ainda capaz de o escrever também. Esta descrição pareceu-me
das coisas mais doces, das mais belas formas de despedida do mundo de um poeta.
Lembrei-me de ler uma descrição que Manuel Alegre fez de Sophia quando também
já ela muito doente e frágil era visitada por este que lhe lia poemas que ela
acompanhava e, já bem no fim da vida, apenas murmurava o ritmo, não as palavras
mas a sua música. Coisas que me deixam a pensar sobre o que pensarão os poetas
quando se preparam para partir. Em que pensaria Eugénio acamado, às portas da morte
ou o Pina já abatido pela dor e a medicação? Que poema traria ainda Urbano
dentro de si? Camões, que poema o alumiaria na escura solidão rente à morte? E Pessoa,
na náusea final?
Que poema acompanhará por dentro
os poetas no seu fim, que indizíveis palavas escreverão dentro da pele sem
poderem terminar o livro último, o último poema?