Eu sei que já passaram muitos
anos mas há memórias que nunca mais nos largam da mão, coisas que ficam, a
lembrança de um cheiro, alguma coisa que nos faz sentir mais fundo. Era madrugada,
não consigo precisar a hora, mas era madrugada bem alta. Dali o S. João apenas
um eco de martelos ao fundo da minha tristeza, era tudo escuro, as estradas
desertas. Percebi que nunca mais, nunca mais o pim, pim, pim, infernalmente
adorável de gente em rodopio, feliz, louca, pelas ruas, nunca mais o cheiro da
sardinha, a alho-porro, o riso e gritaria, nunca mais. Tudo porque, no fundo da
escura madrugada que se abria, o meu caminho era o do fim. Os dias do fim são
quentes, a noite era quente como quentes eram ainda as noites naquele tempo e
porém o frio, dentro era o frio. Acordaram-me e eu tremia, tremia sempre sem
conseguir parar e eu queria, eu queria parar de tremer, eu queria ver-te, já que
era a ultima vez, ainda que já não me visses mas eu queria estar e estive, quase
até ao fim, até a um estertor que me assustou, uma regurgitação final, um passo
atrás que não perdoo até hoje e antes disso qualquer coisa que me tentaste
dizer e eu não percebi.
Depois foi encontrar o caminho do
regresso a casa, o táxi, os martelos ao fundo, uma noite de lágrimas quase
secas, ainda incertas. Finalmente acabou, a angústia, o sofrimento, os dias quentes
insuportáveis, as dores, a falta de ar, as promessas, as mentiras, acabou tudo,
já podemos ser normais outra vez e chorar se apetecer chorar, já não temos de
te enganar que vais melhorar, nem acreditar em todas essas mentiras que
deliberadamente te dissemos.
A manhã de S. João era a surreal
ressaca da casa mortuária onde não quis ver-te por ter a certeza que já não
eras tu, da certidão de óbito, da empresa funerária, uma fila de caixões
perfilados e o dono mostrando-me à direita e à esquerda as qualidades e preços
de cada um enquanto eu percorria como um general observando as tropas, prestes
a escolher o soldado a desmobilizar. Depois a escolha do texto, os preços do
jornal – a família tem o doloroso dever de informar que – e a inenarrável
história da fotografia. Se tinha fotografia? Sim, tinha. O homem a colocá-la
sob o cinzeiro atestado que servia de pisa-papeis – mas esta gente não entende?
Aquele gente não entendia que o que ali deixava de penhor era a tua fotografia,
a mais resistente memória do teu olhar, do teu sorriso, aquilo não era um
bilhete de autocarro para ficar defunto debaixo do cinzeiro! Devolvi-me a
fotografia – fique antes com o BI – disse.
E a mulher gorda da funerária, com
o seu vestido azul escuro de pintinhas brancas, que insistia em cumprimentar-me
com dois beijos e eu que insistia em fugir, afastar-me.
Não a conheço, senhora, largue-me, tomara eu nunca a ter conhecido,
percebe?
Lá fora a cidade entorpecida
dormia a noite festiva. Abençoada, ao menos estava em silêncio.