Esta coisa da folha em branco e
da crónica por escrever é sempre um dilema que não deve andar longe à da
angústia do guarda-redes no momento do penálti. Vou-me, interiormente,
comprometendo com uma crónica por semana mas sempre a isso vou fugindo com a
desculpa, que nem é mentira, da falta de tempo, mas sonegando sempre que as
várias ideias que vou tendo para expressar em crónica são muitas vezes
obnubiladas pela força maior da realidade, daquelas coisas comezinhas que não
se escrevem.
Ponderei explorar nesta crónica
um assunto que me surgiu “por acidente” há dias, sobre a importância, ou a sua
ausência, do nome que transportamos. "O
que há num nome?" perguntou Shakespeare. Importa tanto e afinal tão pouco.
É por ele que respondemos porém não nos é dado escolhê-lo, cola-se-nos à pele
como uma outra pele, faz parte de nós e no entanto é-nos estranho. Seríamos outros,
diferentes, se nos chamássemos outro nome? Provavelmente
não. Foi isto que pensei um destes dias, porém, parece-me mais interessante
explorar nesta crónica a importância da identidade de uma forma mais lata. O
nome como forma de identidade sim, mas que importância tem? O corpo, como forma
identitária parece assunto mais sério, é ele que nos representa melhor e mais
forte do que um simples nome. O nosso aspecto físico torna-nos isso mesmo,
físicos e presentes, passámos a ser reais e não abstractos, que é aquilo que
somos quando apenas o nome nos representa, uma assinatura, uma coisa distante. Passamos
a ter sorrisos e esgares, rugas, pele com textura, cabelos ou a sua ausência,
cor de pele e o seu odor. Tudo isto é identidade.
Quem, como eu, tem um ar banalíssimo, um aspecto igual a toda a gente,
não me distinguindo sequer por uma vestimenta exótica ou um piercing no nariz,
associada ao facto de não gostar de me pôr em bicos de pés, sofro com alguma
frequência do que anedoticamente chamo “creme da invisibilidade” que passa por
ser apresentada a alguém, por vezes mesmo partilhar uma mesa de conversa e no
dia seguinte ou poucos dias depois ser completamente ignorada por essa pessoa
se nos cruzamos uma outra vez. Tem essa “desidentificação”, se me permitem o
neologismo, algumas vantagens como seja poder observar quem tão bem me ignora,
sem dar nas vistas, é como existir sem existir, como estar num lugar público
sob uma cortina que nos protege da observação alheia enquanto nós podemos
continuar a observar. Porém, bem vistas as coisas, se os outros nos perdem, se
perdem de nós o nosso aspecto, o nosso olhar, o nosso sorriso, as nossas mãos, enfim
aquilo que nos caracteriza, certamente já perderam o que fazemos e dizemos que verdadeiramente
nos marca e poderia deixar nos outros marca, portanto também não são dignos de
nos manterem numa qualquer lista imaginária de nomes conhecidos. O que valerá o
nosso nome se o que fazemos ou aquilo que somos nada vale?
* Título composto de dois títulos de Milan Kundera - "A insustentável leveza do ser" e "A identidade"
1 comentário:
Não acredito que, depois de estar à mesa seja com quem for a falar, a falar mesmo, não deixe marca quer se chame Alexandra, Maria ou Julieta. O nome pode não a identificar. O corpo, o invólucro... já duvido. Mas o que verdadeiramente, na minha opinião, não lhe permite, a si, o uso do tal "creme da invisibilidade", é o que é, a força que transmite, a carga poética de que é feita.
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