quinta-feira, dezembro 20, 2012

Antes que o fim do mundo nos aconteça.


Antes que o mundo desate por aí a acabar há que escrever, deixá-lo por escrito, ao mundo, antes que este se esfume, se auto-degrade, desapareça sem deixar memória. E nós temos esta ideia que a memória é que é importante, a posteridade, o que fica de nós. Que ficará de nós depois do fim-do-mundo? O que fica do que somos, ou do que fomos? As coisas que amamos, o que será delas, sobreviverão elas ao apocalipse anunciado? Que será do amor que fizemos ou do que esquecemos de fazer?

Palavras, palavras, palavras, deixa as palavras no papel, escreve-o, deixa-o pintado, tingido, o branco papel a ficar escrito, já que não sabes fazer mais nada com utilidade verdadeira escreve. E isto que escreves tem alguma utilidade? É bem certo que não. E eu de novo a lembrar-me do Pina e do poema do homem da repartição, aquele que anunciava que a poesia ia acabar e que os poetas seriam colocados em lugares mais uteis. Não me liguem, divago, deve ser já o efeito do fim do mundo em mim.

Que será do meu amor quando o mundo se for e eu não estiver aqui para to dar e tu não estiveres cá para o receber? E que importância tem o mundo mesmo se é do Amor que temos que falamos, não é o Amor mais longo e mais forte que o mundo, qualquer mundo? Não é, só por si, o Amor um mundo em si mesmo, um mundo dentro do mundo, a única coisa de verdeiro interesse no mundo?

E de novo eu a permitir que as vagas memórias de frases soltas me assaltem “que farei quando tudo arde?” – Sá de Miranda, “Só me faltavas tu para me faltar tudo” – o Pina outra vez, estes que já foram deste mundo e o mundo os perdeu sem os perder verdadeiramente terão sentido tudo quanto todos nós vamos sentindo, exactamente antes de perderem o mundo ainda que a eles o mundo nunca os tivesse perdido por permanecerem em obra e a obra que deixaram que foi senão Amor? Estas frases que me perseguem, e decerto os perseguiram, o que foram senão Amor, do Amor, pelo Amor?

Quero-te dizer, meu Amor, que te Amo, antes que o fim do mundo nos aconteça.

segunda-feira, dezembro 17, 2012

Crónica de Segunda - A insustentável leveza da identidade*


Esta coisa da folha em branco e da crónica por escrever é sempre um dilema que não deve andar longe à da angústia do guarda-redes no momento do penálti. Vou-me, interiormente, comprometendo com uma crónica por semana mas sempre a isso vou fugindo com a desculpa, que nem é mentira, da falta de tempo, mas sonegando sempre que as várias ideias que vou tendo para expressar em crónica são muitas vezes obnubiladas pela força maior da realidade, daquelas coisas comezinhas que não se escrevem.

Ponderei explorar nesta crónica um assunto que me surgiu “por acidente” há dias, sobre a importância, ou a sua ausência, do nome que transportamos. "O que há num nome?" perguntou Shakespeare. Importa tanto e afinal tão pouco. É por ele que respondemos porém não nos é dado escolhê-lo, cola-se-nos à pele como uma outra pele, faz parte de nós e no entanto é-nos estranho. Seríamos outros, diferentes, se nos chamássemos outro nome? Provavelmente não. Foi isto que pensei um destes dias, porém, parece-me mais interessante explorar nesta crónica a importância da identidade de uma forma mais lata. O nome como forma de identidade sim, mas que importância tem? O corpo, como forma identitária parece assunto mais sério, é ele que nos representa melhor e mais forte do que um simples nome. O nosso aspecto físico torna-nos isso mesmo, físicos e presentes, passámos a ser reais e não abstractos, que é aquilo que somos quando apenas o nome nos representa, uma assinatura, uma coisa distante. Passamos a ter sorrisos e esgares, rugas, pele com textura, cabelos ou a sua ausência, cor de pele e o seu odor. Tudo isto é identidade.

Quem, como eu, tem um ar banalíssimo, um aspecto igual a toda a gente, não me distinguindo sequer por uma vestimenta exótica ou um piercing no nariz, associada ao facto de não gostar de me pôr em bicos de pés, sofro com alguma frequência do que anedoticamente chamo “creme da invisibilidade” que passa por ser apresentada a alguém, por vezes mesmo partilhar uma mesa de conversa e no dia seguinte ou poucos dias depois ser completamente ignorada por essa pessoa se nos cruzamos uma outra vez. Tem essa “desidentificação”, se me permitem o neologismo, algumas vantagens como seja poder observar quem tão bem me ignora, sem dar nas vistas, é como existir sem existir, como estar num lugar público sob uma cortina que nos protege da observação alheia enquanto nós podemos continuar a observar. Porém, bem vistas as coisas, se os outros nos perdem, se perdem de nós o nosso aspecto, o nosso olhar, o nosso sorriso, as nossas mãos, enfim aquilo que nos caracteriza, certamente já perderam o que fazemos e dizemos que verdadeiramente nos marca e poderia deixar nos outros marca, portanto também não são dignos de nos manterem numa qualquer lista imaginária de nomes conhecidos. O que valerá o nosso nome se o que fazemos ou aquilo que somos nada vale?
 
* Título composto de dois títulos de Milan Kundera - "A insustentável leveza do ser" e "A identidade"