Uma pessoa que me é próxima viajou para Seattle, pedi-lhe, por brincadeira, que me trouxesse um pin dos Nirvana. Não o tendo encontrado trouxe-me antes uma versão deluxe de aniversário do “Nevermind”. Vinha a ouvi-lo no carro e a pensar que bastava ouvi-lo, ao Kurt, mesmo que nada se entendesse de inglês, bastava ouvi-lo e prever-lhe o fim trágico, cantava como quem grita “ajudem-me, sinto-me à beira do abismo!”
Cobain, natural de Seattle, lugar meio lúgubre, começou por encontrar na música a única saída possível a quem não tinha nem horizonte nem futuro. A música era todo o horizonte que possuía. Só que junto com a música veio o futuro e o que antes era catarse tornou-se profissão, a profissão trouxe-lhe o estrelato e para isso o miúdo de Seattle não estava preparado. Depressa a música passou do lugar para onde fugir para o lugar de onde fugir e o horizonte que antes era tornou-se abismo de onde não havia por onde escapar, excepto da forma que ele encontrou.
É difícil o equilíbrio entre a arte, coisa intangível, dor do criador e a arte objecto de consumo que também serve para alimentar o criador. Conheci um músico que se recusava a ganhar um centavo com a música que escrevia e interpretava, tinha outra profissão, alegando que a música não se vende. Conheci quem fizesse poemas na rua a troco de umas moedas e um outro que vendia poemas também dessa maneira mas escritos, em folha impressa, de autores famosos. Florbela, agora glosada em filme, escolheu o aniversário para desistir quando desistiu de achar infinitos nos poemas. Sá Carneiro achou também a sua forma de “ir de burro” e tantos outros que não encontraram o equilíbrio entre o chão e transcendente.
Há os que escrevem para não enlouquecer e os que enlouquecem escrevendo. Eu publico uns versos sem verdadeira esperança que sejam lidos nem verdadeira certeza que valham um chavo. Nunca ganhei nada com eles e vivo bem com isso, mas não me importava. O meu último herói musical virou júri de um programa de venda de ilusões e fama fácil. Já não tenho heróis, é oficial! No peito cada um com as suas dores, as dores de parto também – a cada poema um ai, a cada nota sangue e lágrimas. A agonia do fim rasgada apenas pelas clareiras de luz que a arte permite.
Fico-me, só, na minha confusão de afectos.
Não sei se te abrace, Kurt, e afague a tua cabeça em sangue contra o meu peito, ou se te abrace, Pedro, feliz de não seres herói mas estares vivo e, como eu, teres de comer e filhos para criar e nada disso se compadecer com delírios de arte e infinito que não alimentam senão a alma faminta mas deixam o corpo morrer de inanição.
Na falta de melhor, e de heróis, abraço-me a mim mesma, fechando os braços em torno dos joelhos enquanto procuro no escuro um poema, a centelha de infinito que hoje me há-de fazer arder por dentro.