segunda-feira, março 12, 2012

Crónica de Segunda - Ode aos heróis desaparecidos (ou "nevermind" = deixa lá)

Em 94 ouvia-se boa música, aquela que se fazia então. Kurt Cobain punha termo à vida enquanto Abrunhosa enchia a transbordar os seus primeiros coliseus. La dentro gritávamos “talvez foder” como uma catarse de todos os nossos males, quase me atrevia a dizer que até Cobain, se lá estivesse, gritaria também e quiçá encontraria dentro de si mesmo um qualquer caminho que lhe obviasse o sofrimento.

Uma pessoa que me é próxima viajou para Seattle, pedi-lhe, por brincadeira, que me trouxesse um pin dos Nirvana. Não o tendo encontrado trouxe-me antes uma versão deluxe de aniversário do “Nevermind”. Vinha a ouvi-lo no carro e a pensar que bastava ouvi-lo, ao Kurt, mesmo que nada se entendesse de inglês, bastava ouvi-lo e prever-lhe o fim trágico, cantava como quem grita “ajudem-me, sinto-me à beira do abismo!”

Cobain, natural de Seattle, lugar meio lúgubre, começou por encontrar na música a única saída possível a quem não tinha nem horizonte nem futuro. A música era todo o horizonte que possuía. Só que junto com a música veio o futuro e o que antes era catarse tornou-se profissão, a profissão trouxe-lhe o estrelato e para isso o miúdo de Seattle não estava preparado. Depressa a música passou do lugar para onde fugir para o lugar de onde fugir e o horizonte que antes era tornou-se abismo de onde não havia por onde escapar, excepto da forma que ele encontrou.

É difícil o equilíbrio entre a arte, coisa intangível, dor do criador e a arte objecto de consumo que também serve para alimentar o criador. Conheci um músico que se recusava a ganhar um centavo com a música que escrevia e interpretava, tinha outra profissão, alegando que a música não se vende. Conheci quem fizesse poemas na rua a troco de umas moedas e um outro que vendia poemas também dessa maneira mas escritos, em folha impressa, de autores famosos. Florbela, agora glosada em filme, escolheu o aniversário para desistir quando desistiu de achar infinitos nos poemas. Sá Carneiro achou também a sua forma de “ir de burro” e tantos outros que não encontraram o equilíbrio entre o chão e transcendente.

Há os que escrevem para não enlouquecer e os que enlouquecem escrevendo. Eu publico uns versos sem verdadeira esperança que sejam lidos nem verdadeira certeza que valham um chavo. Nunca ganhei nada com eles e vivo bem com isso, mas não me importava. O meu último herói musical virou júri de um programa de venda de ilusões e fama fácil. Já não tenho heróis, é oficial! No peito cada um com as suas dores, as dores de parto também – a cada poema um ai, a cada nota sangue e lágrimas. A agonia do fim rasgada apenas pelas clareiras de luz que a arte permite.

Fico-me, só, na minha confusão de afectos.

Não sei se te abrace, Kurt, e afague a tua cabeça em sangue contra o meu peito, ou se te abrace, Pedro, feliz de não seres herói mas estares vivo e, como eu, teres de comer e filhos para criar e nada disso se compadecer com delírios de arte e infinito que não alimentam senão a alma faminta mas deixam o corpo morrer de inanição.

Na falta de melhor, e de heróis, abraço-me a mim mesma, fechando os braços em torno dos joelhos enquanto procuro no escuro um poema, a centelha de infinito que hoje me há-de fazer arder por dentro.

segunda-feira, março 05, 2012

Crónica de Segunda - Para sempre.

“Nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."


As palavras são de Miguel Sousa Tavares e creio que foram escritas a propósito do falecimento de Sophia, sua Mãe. A mim chegaram-me pela mão da minha amiga Susana, no meu aniversário há cerca de 3 anos, inscritas no verso da belíssima fotografia, de sua autoria, que ilustra a crónica, onde juntou palavras suas com os votos habituais e onde acrescentava que tinha gostado muito de me conhecer e esperando poder contar ainda com a minha companhia. Ofereceu-me, nessa altura, um livro que conjugava três afectos que tínhamos em comum, a fotografia, a poesia e o silêncio. Lembrou-se ela que eu gostaria de receber tal prenda pelo aniversário e acertou, claro. Era assim a Susana, generosa, sensível e discreta. É assim que tem de ser, a sensibilidade não é coisa que se atire ao nariz dos outros como cartão de visita de primeira amostra. A sensibilidade é, também ela, uma coisa discreta que se sente no convívio, quando conseguimos na nossa vida insana parar para saírmos de nós e sentirmos o outro, o que é coisa rara nos dias que correm.

Trabalhamos juntas talvez um ano, e foi bom, não sei se te cheguei a dizer, Susana. Não me lembro se te disse, talvez não tenha dito – sou tão má nessa coisa de dizer sentimentos – que também eu gostei de te conhecer, de trabalhar contigo, de partilhar noites de sono, suor e inquietações e riso e pândega e piadas parvas e poemas e fotografias e silêncios e cansaço. Não me lembro se te disse que não me custou nada, nem quando tentava adormecer pela madrugada a ouvir-te nas teclas do computador click, clack, click, clack, como um relógio que fosse queimando o tempo que ainda nos restava. O que custa é agora, saber que não vais estar mais lá para captar estas águas barrentas de Douro, o barco à deriva perdido que podia muito bem ser eu e afinal eras tu. É isso que custa, é isso que dói. E saber que as palavras são frouxas, dizem tão pouco e servem para rigorosamente nada. E saber que a vida é injusta. Mesmo quando somos nós que encontramos o caminho do fim, não é menos injusta por isso. Espero que onde quer que estejas tenhas encontrado uma qualquer luz que te faltava, nós por cá não te esqueceremos. Na memória tudo pode ser nosso para sempre.
Até sempre, Amiga.

Crónica de Segunda - Para sempre.

“Nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."

As palavras são de Miguel Sousa Tavares e creio que foram escritas a propósito do falecimento de Sophia, sua Mãe. A mim chegaram-me pela mão da minha amiga Susana, no meu aniversário há cerca de 3 anos, inscritas no verso da belíssima fotografia, de sua autoria, que ilustra a crónica, onde juntou palavras suas com os votos habituais e onde acrescentava que tinha gostado muito de me conhecer e esperando poder contar ainda com a minha companhia. Ofereceu-me, nessa altura, um livro que conjugava três afectos que tínhamos em comum, a fotografia, a poesia e o silêncio. Lembrou-se ela que eu gostaria de receber tal prenda pelo aniversário e acertou, claro. Era assim a Susana, generosa, sensível e discreta. É assim que tem de ser, a sensibilidade não é coisa que se atire ao nariz dos outros como cartão de visita de primeira amostra. A sensibilidade é, também ela, uma coisa discreta que se sente no convívio, quando conseguimos na nossa vida insana parar para saírmos de nós e sentirmos o outro, o que é coisa rara nos dias que correm.
Trabalhámos juntas talvez um ano, e foi bom, não sei se te cheguei a dizer, Susana. Não me lembro se te disse, talvez não tenha dito – sou tão má nessa coisa de dizer sentimentos – que também eu gostei de te conhecer, de trabalhar contigo, de partilhar noites de sono, suor e inquietações e riso e pândega e piadas parvas e poemas e fotografias e silêncios e cansaço. Não me lembro se te disse que não me custou nada, nem quando tentava adormecer pela madrugada a ouvir-te nas teclas do computador click, clack, click, clack, como um relógio que fosse queimando o tempo que ainda nos restava. O que custa é agora, saber que não vais estar mais lá para captar estas águas barrentas de Douro, o barco à deriva perdido que podia muito bem ser eu e afinal eras tu. É isso que custa, é isso que dói. E saber que as palavras são frouxas, dizem tão pouco e servem para rigorosamente nada. E saber que a vida é injusta. Mesmo quando somos nós que encontramos o caminho do fim, não é menos injusta por isso. Espero que onde quer que estejas tenhas encontrado uma qualquer luz que te faltava, nós por cá não te esqueceremos. Na memória tudo pode ser nosso para sempre.
Até sempre, Amiga.