Viagem mais ou menos literária entre Paulo Abrunhosa e Manuel Jorge Marmelo. Ou de como a realidade vastas vezes ultrapassa a literatura.
Uma pessoa quando encorna que tem
de escrever uma crónica, e à segunda-feira ainda por cima; uma pessoa quando empreende
que melhor do que o som é o silêncio que se faz antes e depois dele, que melhor
do que escrever untando uma folha de rabiscações é a mesma folha branquinha
antes de estragar; uma pessoa quando cisma que um tema tão bom como outro
qualquer para a crónica é encher uma folhinha de bisguentas dissertações
proto-filosóficas sobre o valor da literatura face à realidade ou vice-versa
que é como quem diz o valor de um zero amarelo, redondo e feliz, face aos
múltiplos de mil com que nos atiram para a miséria e o desemprego e nos
esfregam na cara a fome e degradação de tantos em nome da asséptica economia de
mercados só para alguns… em suma, uma pessoa lixa-se. E escreve uma crónica
assim.
No ano de 2001 morria Paulo
Abrunhosa, deixando de si, a título póstumo, o livro “Diário de um dromedário”.
Entre um vasto conjunto de poemas, muitos dos quais epigramáticos, surgia um,
de seu nome “Manifesto”, que rezava assim:
“Até no meu mais pequeno gesto
se torna manifesto
que tudo o que quero
é ser um zero!”
O poema por si só, parece-me de resoluta
força, porém se isso não bastasse, o autor resolveu fazer-lhe uma extensa nota
de rodapé explicando, a quem não tivesse compreendido, a inexpugnável importância
do zero. Único número inteiro não
natural, inventado pelos Hindus, é deveras excepcional congregando em si a
capacidade de se elidir, se somado a outro numeral ou de extinguir e absorver
nele o outro aquando das multiplicações. Enfatizava ainda que “Não é positivo,
nem negativo. É zero.”, fazendo referência ao conceito milenar do nada Taoista.
O zero como “o início de tudo”. Lembrei-me muito destas palavras quando
deparei com o título do recém editado livro de contos de Manuel Jorge Marmelo,
mais ainda quando li, no conto que dá nome ao livro, que o protagonista do
mesmo resolvera desaparecer do mundo, fugindo da civilização para uma remota
ilha cabo Verdiana, passando a viver sob um cobertor esburacado de onde observava
o mundo em redor, lendo, escrevendo, tentando silenciar a sua voz interior e
aspirando, com todas as suas forças a transformar-se “num redondo e encantador
zero à esquerda”. Este redondo e, particularmente, “encantador” zero à esquerda
fez-me mergulhar na tal nota de rodapé de Paulo Abrunhosa e no seu “Manifesto”
que acima citei.
E vinha esta pobre alma, saindo de
uma apresentação do “Zero à esquerda” de que vos falo, ainda meia arrelampada a
matutar sobre a profundidade do zero literário – onde me revejo feliz e
encantadoramente redonda, como o outro, sem sequer precisar de me esconder sob
nenhum esburacado cobertor – sou detentora da mais fina capa de invisibilidade
que me é, aliás, muito útil na maioria das situações , permitindo-me ler,
escrever e atentar sobre o mundo sem fazer muito barulho de maneiras que ele, o
mundo, dificilmente dá pela minha presença ou perde muito tempo a pensar sobre
ela.
Mas dizia, vinha eu a atentar no
zero literário quando, já na rua, ao avançarmos na direcção do carro – eu mais
a minha comitiva – somos abordados por um personagem – eu aposto em Thomas
Pynchon (ah não conhecem? Leiam e aprendam que eu não duro sempre!) – que
celerado (e não, não é erro) suspendeu a marcha de um Audi, repito: um Audi, saltou
do seu interior e, em manifesto desespero, rente às lágrimas, nos pediu “um
euro”, tal e qual, para poder prosseguir viagem até ao seu destino: Gondomar,
disse.
E, após a necessária
contribuição para a “viagem”, no seu
mais lato sentido, do nosso “amigo”, fiquei-me feliz por perceber como a realidade
ultrapassa tão largamente a literatura, sobretudo no que toca a zeros tão
neutros quanto absorventes.