Pim, pim, pim – vai ser assim
toda a noite (ou terá sido, quando lerem esta crónica).
Pim, pim, pim – ano após ano,
nada de diferente, pouco se modifica. É normal, é São João, há sardinhas,
manjericos, alhos porros, erva cidreira, balões que sobem livres atiçados pela
alegria simples do povo. Irreprimível nesta noite, mesmo agora, mesmo abafado,
contraído, contrariado, o povo há-de saber soltar-se no São João.
Pim, pim, pim – sempre adorei
esta festa da comunhão de pobres e ricos, uma noite tão invulgar. E que infeliz
ficava se tinha de lhe faltar, como quando tive o acidente e não me permitiram
a martelada no crânio ainda mal recomposto, ou quando um ano ficaste doente
Pai, lembras-te? Uma outra vez tinha um exame qualquer mesmo em cima da data.
Mas foram poucas as vezes que não fui saudar o santo nas ruas.
Pim, pim, pim – o cheiro a
sardinhas vai entranhar-se em casa se não fechar já a janela, agora o
foguetório, pum, patapum, patum, pum,
pum, o fogo de artifício, barulho, mais barulho, tanto barulho.
Pim, pim, pim – alguém me apaga a
luz? O som? Por favor devolvam-me o silêncio. Tenho direito ao meu silêncio,
preciso de silêncio já! Que horas são? Que horas eram quando morreste Pai? Que
horas eram quando abracei a Mãe e lhe disse “agora somos só nós”. Que horas
eram da madrugada, Pai? Ah mas umas sardinhas é que era, disseste e com uma
pinguinha para empurrar, que bom seria. Não te dei sardinhas mas dei-te a
comida à boca, o leite creme, como a um bébé, e reprimendas, “não te portes
mal, não tires a máscara do oxigénio, vá!”, como a um bébé.
A mulher da cintigrafia “dê os
óculos, a carteira e tudo o que tiver nos bolsos à mãe” - eu a rir-me, tu a piscares-me o olho. “Ah!
Desculpe, à filha!” e pouco depois lá tornava “Agora a Mãe vai blá, blá, blá”
eu a encolher os ombros e tu a sorrires sob o bigode.
Iguais, tu e eu, o mesmo molde – “é
a cara do Pai” – pois é. Ainda é, o Pai é que já não há.
Pim, pim, pim – que horas eram
quando te foste Pai e nos fizeste vir pela madrugada, de táxi, a atravessar o
Sâo João do Porto e chegar à nossa casa vazia de ti. Já estava vaia de ti há
três semanas, não estranhamos mas estranhamos que agora para sempre. Agora tu
nunca mais. Só as tuas coisas, os teus papeis, as tuas roupas, o teu cheiro,
mas tu já não.
Pim, pim, pim – lá fora os
martelos – pim, pim, pim – agora como dantes, pela madrugada, não sei a que
horas – pim, pim, pim.
Mas alguém me cala o filho da
puta do martelanço?