Silly season, silly things...
Não se sabe de que falar nestes meses de Verão, Agosto então é o suplício da falta de assunto. Sol na moleirinha e livros e músicas que nos tiram do lugar presente e nos colocam em qualquer outro lugar, talvez um inexistente ou um dentro de nós, um que nem sabíamos que tínhamos. Dei por mim a vagabundar na memória e achei por bem ser autobiográfica e dar, finalmente, neste blog que assino, algo de mim.
O meu bisavô era músico. Morreu muito antes de eu ter nascido, nunca o conheci senão pelo pouco que o meu Pai, em cuja infância ele falecera, me contou dele. Sei pouco mais para além que partilhava com o meu Pai o nome e que era o mestre, o regente, da “Música” da terra. A meu Pai, que dele não herdou grande predilecção pela música, apesar do “bom-ouvido” (ainda que surdo nos agudos) lembro-me de o ouvir contar que, ainda na infância, ele e os primos da mesma idade brincavam (e destruíam) com pautas antigas. Teria sido compositor? Apenas executante? Julgo que nunca o saberei. Sei que este personagem ancestral, coberto do pó de uma memória não minha me inspirou, na altura em que me foi “revelado”, nos primórdios da adolescência, um certo fascínio.
Fascinava-me encontrar algures na raiz da minha própria árvore genética o fio condutor que me ligava tão fortemente à música.
Quando, pela via da edição de livros, os que me rodeiam perceberam que escrevia (os outros conhecem sempre de nós uma parte amputada, apenas o pouco que lhes mostramos ou o que alguns, mais atentos, conseguem ler-nos nos olhos) se questionados sobre qual das sete artes escolheria como minha favorita, decerto arriscariam dizer Literatura (pois se é verdade que desde tenra idade martirizava papéis com a minha pobre caligrafia, posteriormente substituídos pela cantilena irritante das teclas da máquina campaínhando furiosamente a cada final de linha – abençoado computador que pôs cobro a esta poluição sonora! – e sempre me fazia acompanhar de livros para toda a parte, fossem eles “seis balas” ou Tolstoi…). Nada mais errado. A minha Arte de eleição é, sem duvida alguma, a música, sempre o foi, acredito que sempre o venha a ser. Quando nada me parece fazer sentido, sobrevém sempre a música. Quando me sobra a vontade de fugir ou morrer, a música parece ser a única coisa que resta, como uma sombra na canícula.
Daí que a descoberta do meu bisavô músico despertasse em mim este fascínio que era tanto maior pelo desconhecimento da personagem na vida real. Certo dia, em experiências com barro, moldei-lhe um busto, não o conhecendo e na ausência de uma imagem que o plasmasse resolvi desenhar-lhe uma risca ao lado, como o meu Pai, e plantei-lhe um bigode mais farto e robusto que o do meu Pai, sendo que lho arrebitei nas pontas dando-lhe um ar aristocrático, ajustado à época e ao ofício, achava eu. Mostrei-o depois ao meu Pai a saber se estava parecido com o original, ele disse-me que sim, não sei se para não me desfeitear se por ausência nele próprio de uma memória fidedigna do avô.
Fascinava-me encontrar algures na raiz da minha própria árvore genética o fio condutor que me ligava tão fortemente à música.
Quando, pela via da edição de livros, os que me rodeiam perceberam que escrevia (os outros conhecem sempre de nós uma parte amputada, apenas o pouco que lhes mostramos ou o que alguns, mais atentos, conseguem ler-nos nos olhos) se questionados sobre qual das sete artes escolheria como minha favorita, decerto arriscariam dizer Literatura (pois se é verdade que desde tenra idade martirizava papéis com a minha pobre caligrafia, posteriormente substituídos pela cantilena irritante das teclas da máquina campaínhando furiosamente a cada final de linha – abençoado computador que pôs cobro a esta poluição sonora! – e sempre me fazia acompanhar de livros para toda a parte, fossem eles “seis balas” ou Tolstoi…). Nada mais errado. A minha Arte de eleição é, sem duvida alguma, a música, sempre o foi, acredito que sempre o venha a ser. Quando nada me parece fazer sentido, sobrevém sempre a música. Quando me sobra a vontade de fugir ou morrer, a música parece ser a única coisa que resta, como uma sombra na canícula.
Daí que a descoberta do meu bisavô músico despertasse em mim este fascínio que era tanto maior pelo desconhecimento da personagem na vida real. Certo dia, em experiências com barro, moldei-lhe um busto, não o conhecendo e na ausência de uma imagem que o plasmasse resolvi desenhar-lhe uma risca ao lado, como o meu Pai, e plantei-lhe um bigode mais farto e robusto que o do meu Pai, sendo que lho arrebitei nas pontas dando-lhe um ar aristocrático, ajustado à época e ao ofício, achava eu. Mostrei-o depois ao meu Pai a saber se estava parecido com o original, ele disse-me que sim, não sei se para não me desfeitear se por ausência nele próprio de uma memória fidedigna do avô.
Em tempos conheci alguém que me provocou a mais estranha das sensações. Naquele que já não era o nosso primeiro encontro mas que, até hoje, a mim me soou como verdadeiramente primeiro, senti algo tão profundo, tão estranho e diferente que me perturbou (e provavelmente ainda perturba pois ainda hoje o lembro e já se passaram tantos anos…). Conhecíamo-nos há já algum tempo mas tínhamos pouca proximidade sendo que nos dias que precederam aquele encontro nos tornamos, à força de um acontecimento inesperado que nos causou a ambos angústias e ansiedade, mais próximos e, quando naquele dia nos encontramos ainda por força do mesmo assunto, era quase como se comemorássemos um sucesso conjunto, ultrapassada que estava a “tempestade” que nos uniu. Tínhamos ficado amigos mas ainda assim quase dois estranhos procurando conhecer-se. Tudo normal até aqui, mas quando nos despedimos senti uma súbita e intensa vontade de um abraço. Não me recordo das nossas indumentárias, nem da minha nem da dele à excepção do pesado casaco de couro negro que ele usava como agasalho e que me fez querer ainda mais aquele abraço que obviamente nunca aconteceu. Era um Janeiro frio de Inverno e apeteceu-me abraçá-lo pela cintura ou pelo dorso sob o casaco para mais longamente me deixar aquecer. Aquela vontade intensa e inusitada de um abraço alheio, de alguém que eu mal conhecia perturbou-me. Não sendo eu dada a paixões repentinas, sendo igualmente improvável uma explicação Edipiana quando, embora já tendo perdido o meu Pai, nem eu nem ele éramos dados a efusivos abraços, surpreendeu-me aquele sentimento forte mendicante de um abraço, como se este fosse a salvação. Na despedida, lembro-me bem, olhamo-nos nos olhos e eu achei sentir no olhar dele a mesma vontade de ser abraçado (vontade claramente inventada em mim como espelho do que sentia).
Muitos meses depois, já me não lembrava este episódio, éramos agora bastante mais próximos, entre aquele encontro e este que agora conto muita água correu sob a ponte da vida de ambos e muitas mais vezes estivemos juntos sem que eu sentisse despedaçar-me por um abraço. Até um dia em que ele me convidou para uma espécie de comemoração infeliz, um exorcismo conjunto de uma dor comum a muitos e que o abalava de forma particular. Aceitei o convite acabando por me encontrar sozinha entre uma multidão que, em rigor, não conhecia mas conhecia-o a ele, fora, aliás, por ele que viera. Quando o avistei pelas costas toquei-lhe num braço, virou-se e, radiante por me ver, abraçou-me fortemente, como que num exorcismo da sua dor, como se esperasse que esse abraço o salvasse. Eu, fosse por ser sempre desajeitada e desconfortável no capítulo de abraços, fosse por me sentir perturbada por aquele longo abraço público onde todo esse público me era estranho, sem que o repelisse, gentilmente afastei-o, quebrei o anel, embora confortando-o, como uma Mãe conforta um miúdo que magoou o joelho “pronto, pronto, já passou”. Até hoje me pesa esse gesto cobarde.
A história entre nós dois ficou sempre inacabada, um livro cujo último capítulo nunca aconteceu. Primeiramente um abraço apenas imaginado, depois um abraço não concluído, ficou a faltar a última penada: o abraço completo, inteiro, definitivo. Passaram muitos anos desde então, continuamos amigos, fomo-nos falando a cada passo, às vezes ensaiamos mesmo uns “meios-abraços” mas nunca encerramos esta trilogia. A faltar ficou um abraço completo, amplo e simétrico.
Talvez fosse sempre isso que nos faltou, talvez o devêssemos ter dado, talvez ele nos salvasse!
De quê? Não sei, mas sei que sempre nos olhei como duas almas perdidas à procura da salvação.
Muitos meses depois, já me não lembrava este episódio, éramos agora bastante mais próximos, entre aquele encontro e este que agora conto muita água correu sob a ponte da vida de ambos e muitas mais vezes estivemos juntos sem que eu sentisse despedaçar-me por um abraço. Até um dia em que ele me convidou para uma espécie de comemoração infeliz, um exorcismo conjunto de uma dor comum a muitos e que o abalava de forma particular. Aceitei o convite acabando por me encontrar sozinha entre uma multidão que, em rigor, não conhecia mas conhecia-o a ele, fora, aliás, por ele que viera. Quando o avistei pelas costas toquei-lhe num braço, virou-se e, radiante por me ver, abraçou-me fortemente, como que num exorcismo da sua dor, como se esperasse que esse abraço o salvasse. Eu, fosse por ser sempre desajeitada e desconfortável no capítulo de abraços, fosse por me sentir perturbada por aquele longo abraço público onde todo esse público me era estranho, sem que o repelisse, gentilmente afastei-o, quebrei o anel, embora confortando-o, como uma Mãe conforta um miúdo que magoou o joelho “pronto, pronto, já passou”. Até hoje me pesa esse gesto cobarde.
A história entre nós dois ficou sempre inacabada, um livro cujo último capítulo nunca aconteceu. Primeiramente um abraço apenas imaginado, depois um abraço não concluído, ficou a faltar a última penada: o abraço completo, inteiro, definitivo. Passaram muitos anos desde então, continuamos amigos, fomo-nos falando a cada passo, às vezes ensaiamos mesmo uns “meios-abraços” mas nunca encerramos esta trilogia. A faltar ficou um abraço completo, amplo e simétrico.
Talvez fosse sempre isso que nos faltou, talvez o devêssemos ter dado, talvez ele nos salvasse!
De quê? Não sei, mas sei que sempre nos olhei como duas almas perdidas à procura da salvação.
A ideia do músico imagem do guardião do silêncio, espécie de figura mítica digna de veneração havia de perder-se ao longo do tempo, conforme fui conhecendo músicos, mais os executantes do que os compositores – estes últimos exercendo um especial fascínio porque criadores do sonho – e percebendo-os tão capazes como eu de chorar pelas mesmas moléstias ou rir de piadas tontas. A desmistificação não me fez mal, pelo contrário, a “humanização” do músico faz da música mais humana e por isso mais íntima, mais próxima, mais “minha”.
Mesmo assim os músicos que vim a conhecer aconteceram-me, não os procurei, desde o mais indistinto e medíocre interprete até ao mais genial dos compositores, não os procurei, a uns por não os conhecer antes de mos apresentarem, a outros por medo de destruir a imagem que o ouvinte cria, sem precisar conhecer a criatura (apenas se sonha o criador e não a criatura que o mesmo é). Ainda assim, uma vez ou outra, surpreendo-me com reacções como a que um destes dias me acometeu.
Sentada num café “de sempre” fui surpreendida com a entrada de um músico que aprecio há muitos anos, co-responsável por um número considerável de músicas que foram e são a banda-sonora da minha vida. Foi impossível não sentir um sobressalto com a sua entrada não sei se pela admiração ao seu trabalho ou por não o ver há uns anos, não que ele seja como figura pública uma figura de proa, pelo contrário, silencioso e discreto passou despercebido no café e veio sentar-se numa mesa junto à minha. A ajudar ao meu desconforto ouvia-lhe a conversa, inadvertidamente e sentia-me, por eu o conhecer a ele e ele a mim não, como que a invadir o seu espaço, espécie de voyeur.
Trouxe-me à memória uma estória antiga, do tempo em que ele era um personagem que me era comum por morar perto do seu local de trabalho. Recordo-me do seu ar de surpresa, um dia ao ver-me passar com um objecto de adorno que era um merchandise de uma banda a que, na época, ele pertencia, liderada por um verdadeiro encantador de serpentes. Não percebi o ar de espanto, como que ele próprio apanhado pela surpresa daquilo que representava, talvez indeciso entre o perceber se a manifestação de afecto que o merchandise representava quando sendo utilizado no meu dia-a-dia passaria pela qualidade da música de que ele era parte integrante e de que se poderia decerto orgulhar-se ou pelo charme destilado pelo “band-leader” que era coisa a ser apreciada a um considerável raio do palco.
Não me pareceu (a mim pelo menos) a distinção muito importante... à luz do palco tudo se confunde!
(estórinha a continuar se me der o vento nesse sentido…)