terça-feira, junho 10, 2014
segunda-feira, junho 09, 2014
Inquietação.
O meu ramo profissional não é
muito dado à descrição do etéreo e do menos objectivo. Quando entrei para a
Faculdade garantiam-me os professores, com ar doutoral, que a Medicina é uma
Arte e eu, na minha melhor inocência, acreditei, para só mais tarde perceber
que, mesmo nos achaques da alma, a componente artística derivava mais do “artista”
do que do substrato e, transformado tudo em linguagem científica, esta era isso
mesmo – científica.
Há dias, convidada para assistir
a uma palestra, dei com um colega que, nos comentários ao que havia sido
exposto na mesma apresentação, desatou a dissertar sobre “a inquietação que uma
dor no peito provoca”, tal e qual. A “inquietação”. Foi tudo quanto precisei
para não ouvir mais nada do que de científico ali foi dito e ocupar-me a pensar
em inquietação e dores no peito, não das que afectam coronárias entupidas, nem
tão pouco moléstias da parede do tórax ou dos pulmões, de tudo quanto de
orgânico resida e possa provocar dores na caixa torácica. Pelo contrário encanta-me
a inquietude do lugar onde imaginamos o afecto e os medos. Ali se quedam os
amores e os desamores, os receios, os sustos, as inexactidões, ali mesmo a
alma, quando não achamos outro lugar onde a situar. Tudo porque o orgânico
músculo se acelera por cada vez que em nós uma corda mais forte é mexida.
Fiquemos então com a inquietação no
peito, parece-me bonito para terminar este ciclo. Esta é, provavelmente, senão
a última “Crónica de Segunda” pelo menos a última por muito tempo. Não sei se
para sempre ou apenas por tempo indefinido, não tendo isso ainda bem certo em
mim, irei encerrar esta “loja”. Para já para balanço, sem certezas, porém, de
voltar e sem data para o fazer.
A todos quantos me leram o meu
sincero agradecimento, pela paciência e fidelidade, pelos comentários, pelo
abraço mesmo o virtual.Encerro este ciclo, pelo menos até reencontrar a minha voz, com esta inquietação no peito. Enquanto sentimos inquietação sabemos ao menos que estamos ainda vivos.
Bem hajam.
segunda-feira, maio 26, 2014
Crónica de Segunda - Uma crónica de falecimento colectivo.
As
minhas crónicas de segunda não costumam abordar a política, se entendermos
política como o comentário aos partidos, suas diatribes, discursos de líderes,
etc, já que, de outra forma, tudo é política. "Mesmo
caminhando contra o vento/ dás passos políticos/ sobre
solo político", diria Szymborska pelo que, e atendendo à ventania contra a
qual me vi obrigada a caminhar hoje todo o dia, me vejo na necessidade de abrir
as portas desta crónica à política dita “pura e dura”, aquela que se jogou
ontem em eleições europeias.
Cansados que andaremos todos de comentadores encartados e criticadores de campo e de bancada vou-vos poupar à intrincada análise da óbvia derrota da coligação de governo contra a pífia vitória socialista, que perdeu votos em todas as direcções – da esquerda do PCP, em claro crescimento, ao populista Marinho Pinto, antes defensor da abstenção e agora defensor de não sabemos ainda bem o quê. Dispensar-me-ei também ao comentário de derrota do BE repartido pelo Livre e por outros que tais.
Dispenso-me ainda a comentar as reacções, todas diferentes, todas iguais, dos que ganhando por pouco histericamente clamam vitória ou dos que perdendo expressivamente exultam por a vitória dos adversários não ser afinal tão grandiosa. Tudo isto são notícias velhas. Fica-me o pensamento encalhado (e encolhido) ao perceber as astronómicas percentagens de vitória de partidos nacionalistas, de extrema direita e neo-nazis, bem como marginalmente também alguns de extrema esquerda como na Grécia. A Europa como União desmorona-se a olhos vistos mas mais assustador ainda é ver este crescimento nos concidadãos europeus, filhos de Roma e da Grécia, de ideais que achei terem sido enterrados em Nuremberga. Isso sim assusta-me e entristece-me.
Porém esta crónica era apenas o
pretexto de me questionar, de olhos arregalados: que povo é este o que temos? Que
cobarde e ignorante gente é esta que, quarenta anos postos sobre o 25 de Abril,
que nos abriu a liberdade não só de expressão mas mais, muito mais, a liberdade
de escolha, de sermos cidadãos por inteiro, de nos podermos expressar como tal
escolhendo os que queremos que nos governem, se nega esse direito, despreza a
luta de tantos e se deixa assim cair nesta abulia?
E quem são, ou onde estão, os magotes
de gente que encheram praças em diversas manifestações, os polícias endiabrados
que subiram escadarias de faz de conta? Onde estão os críticos de café? Os
indignados da vida? Os que cantaram grândolas? Bem sei que há uma leva recente
de emigrados que não puderam votar e não serão assim tão poucos, mas com
franqueza…66,6%? Somos 33,4% apenas de gente viva? Alô? Está alguém aí?
Não me venham, estes defuntos, depois
com queixumes ok?
segunda-feira, maio 05, 2014
Crónica de Segunda - A devida homenagem
O homem não gosta de efemérides e
diz lembrar-se com dificuldade de datas aniversárias. Mas, que diabo, vinte
anos são vinte anos, conta redonda que só se faz uma vez e há homenagens que
devem ser prestadas e uma data assim redonda é pretexto tão bom como qualquer
outro para celebrar o que merece a pena ser celebrado.
Falo-vos de Pedro Abrunhosa
enquanto figura pública que é o mesmo que dizer enquanto músico na ribalta. Antes
de 94 já este tinha comido muito pó de estrada, pisado muito palco improvisado,
carregado abnegadamente com um instrumento de dimensões que não lembram ao
diabo, estudado, escrito, experimentado muita coisa na música mas tudo isso
ainda longe dos focos. Foi no ano de 94, apresentando o seu longamente suado “Viagens”,
que se torna, rapidamente e com todo o mérito, figura de proa, não mais
abandonando um lugar na história da música nacional, pelo contrário, tendo conseguido crescer cada vez mais, ultrapassando com garbo os anticorpos que
sempre se criam logo após um artista se alçar ao estrelato e sedimentando por
completo o lugar que é seu.
Muitos o criticaram como sendo um
epifenómeno de curta duração, outros o apodaram de golpe de marketing – Qual golpe?
Qual marketing? – mas, como quem ouvisse com atenção, logo em 94 a obra e o
artista, percebia, Abrunhosa é uma construção sólida e genuína, nada devendo ao
marketing senão o bom uso que dele soube fazer com sageza e inteligência a que
não estávamos habituados em músicos, gerindo com mão de aço a carreira, nada
deixando ao acaso.
Um músico intelectual ainda hoje,
embora um pouco menos, nos assombra como uma improbabilidade. Abrunhosa provou
ser isso e muito mais, ultrapassando o plano de discussão da música e arte para
a política externa e interna, a história e a filosofia, era comum ouvi-lo
corrigir a sintaxe de imberbes “entrevistadores” à nora com o convidado.
Ultrapassou o plano mediático da imprensa especializada em música – sabe-se lá
o que é isso – e o domínio das revistas cor-de-rosa ou dos posteres de
embevecer adolescentes para as parangonas dos semanários de referência. E nada
mais foi como dantes!
O genial músico sabe rodear-se
dos melhores que escolhe e vai fazendo substituir conforme as suas necessidades
de evolução criativa. Inicialmente acompanhado pelos Bandemónio - que conheceram
4 formações – quase tantas como discos de originais à época, marcos geodésicos
do seu percurso e, no seu seguimento, agora acompanhado pelos Comité Caviar,
evoluindo sempre, avançando, avançando. Ouvidos atentos à música que se faz e
que se fez, antenas alerta ao que se passa no mundo. Amante de História e de
Arqueologia sabe, melhor do que ninguém, encontrar o seu/nosso lugar na linha espácio-temporal
e, talvez por isso, a sua inegável e constante actualidade.
Diz que foi no 1º de Maio que
apresentou “Viagens” ao mundo, acredito, não estive lá, mas pouco mais tardei a
dar com ele e sei que são já vinte anos de Abrunhosa sempre comigo, no mais
íntimo de mim que é onde se tocam as cordas da emoção, do silêncio, da comunhão
com o sagrado que, no meu caso, vem com música e poesia por dentro.
Daí ser devida esta homenagem. Obrigada
Pedro, obrigada Bandemónio, obrigada Comité Caviar.
Há vinte anos, em data incerta, desde a primeira vez, não voltei igual, como não voltei igual tantas outras vezes depois, e depois, e depois e ainda agora continuo a não voltar igual, volto diferente e volto melhor e confio que assim havemos de continuar. Bem hajam por isso, tudo tão natural e simples “como quem gosta do Sábado”, portanto… “enquanto não há amanhã, ilumina-me, ilumina-me.”
segunda-feira, janeiro 06, 2014
Crónica de Segunda - Esta crónica não é sobre o Eusébio.
Como ponto prévio digo-o já, não
ligo nenhuma ao Futebol, é um desporto que não me dá particular gozo, vejo
alguns jogos da selecção e pouco mais, nunca sei quem nem quando joga e, sendo
filha de benfiquistas, tenho como clube dito do coração o F.C. Porto apenas
porque gosto do azul e porque o clube leva no nome a minha cidade amada.
Nada disto interessa quando se
fala da morte de um Eusébio. Eusébio foi, naturalmente, uma figura maior do
desporto, futebolista de elite, num tempo difícil, sendo ele um rapaz das
colónias, vindo da pobreza e mostrando ser capaz das melhores façanhas,
verdadeiramente genial, elevando o nome do País, sempre pequeno e àquele tempo
entrincheirado na ditadura, nas várias partes do globo, com isso conseguindo
alguma notoriedade para Portugal e mais ainda para o seu Benfica. Por isso
quando Eusébio morreu, de forma algo inesperada não obstante a doença que o
minava, compreendo não só a dor dos que o conheceram, com ele privaram e da sua
família, como compreendo a dor e o sentimento de orfandade que sempre acompanha
a morte, naqueles que não o conhecendo eram seus admiradores. Compreendo isso e
acho até muito bem, sendo ele um símbolo nacional de grandeza na sua profissão,
de trabalho abnegado e sucesso como resultado desse trabalho, por seu mérito,
que se perca tempo nos telejornais com a notícia da sua morte, curtas resenhas
das suas glórias e reacções várias de figuras públicas e anónimos ao seu
falecimento. Não acho mal nada isso, acho compreensível, aceitável, quiçá até
desejável, já que a melhor forma de exorcisar a morte e lembrar os que partem é
essa comemoração misto de dor, tristeza e memória. O Presidente da República
fazer uma comunicação ao País parece-me um tudo nada exagerado mas até isso é
aceitável atendendo ao facto de se tratar de alguém entendido por muitos como
um símbolo nacional.
É por isso que esta crónica não é
sobre o Eusébio, esta crónica é sobre vários outros, trabalhadores abnegados na
sua área, criativos e únicos, sujeitos geniais que elevaram o nome do País por
terem sido mais altos, por terem ido mais além, por terem transmitido sonho,
afecto, cultura, por terem elevado também a língua, esta que falamos e que é a
nossa Pátria como dizia Pessoa. Esses outros que também nos deixaram
recentemente e que do tempo de antena televisivo foram chutados para o rodapé,
pequena peça no fim do telejornal, curto documentário no canal dois a hora
incerta. Falando apenas dos que nos deixaram mais recentemente lembro Manuel
António Pina na sua superior grandeza, dos mais completos escritores que me
lembro de ter lido, de uma humildade tão grande como a sua própria grandeza;
lembro Urbano Tavares Rodrigues, ainda activo escrevendo sempre até ao seu
final, lembro António Ramos Rosa, dedilhando poemas nos seus dedos longilíneos,
o magnífico Nadir Afonso, o extraordinário Bernardo Sassetti e muitos que agora
não me ocorrem, nem seria normal que me ocorressem já que a sua morte não
desorganizou toda a programação dos media, não ocupou dias inteiros,
reportagens de fundo, velórios em directo, lágrimas verdadeiras e as de
crocodilo.
Descansa em Paz Eusébio. Tu e
todos os que já partiram e nos fizeram sonhar.
segunda-feira, outubro 21, 2013
Crónica de Segunda - De zero a zero.
Viagem mais ou menos literária entre Paulo Abrunhosa e Manuel Jorge Marmelo. Ou de como a realidade vastas vezes ultrapassa a literatura.
Uma pessoa quando encorna que tem
de escrever uma crónica, e à segunda-feira ainda por cima; uma pessoa quando empreende
que melhor do que o som é o silêncio que se faz antes e depois dele, que melhor
do que escrever untando uma folha de rabiscações é a mesma folha branquinha
antes de estragar; uma pessoa quando cisma que um tema tão bom como outro
qualquer para a crónica é encher uma folhinha de bisguentas dissertações
proto-filosóficas sobre o valor da literatura face à realidade ou vice-versa
que é como quem diz o valor de um zero amarelo, redondo e feliz, face aos
múltiplos de mil com que nos atiram para a miséria e o desemprego e nos
esfregam na cara a fome e degradação de tantos em nome da asséptica economia de
mercados só para alguns… em suma, uma pessoa lixa-se. E escreve uma crónica
assim.
No ano de 2001 morria Paulo
Abrunhosa, deixando de si, a título póstumo, o livro “Diário de um dromedário”.
Entre um vasto conjunto de poemas, muitos dos quais epigramáticos, surgia um,
de seu nome “Manifesto”, que rezava assim:
“Até no meu mais pequeno gesto
se torna manifesto
que tudo o que quero
é ser um zero!”
O poema por si só, parece-me de resoluta
força, porém se isso não bastasse, o autor resolveu fazer-lhe uma extensa nota
de rodapé explicando, a quem não tivesse compreendido, a inexpugnável importância
do zero. Único número inteiro não
natural, inventado pelos Hindus, é deveras excepcional congregando em si a
capacidade de se elidir, se somado a outro numeral ou de extinguir e absorver
nele o outro aquando das multiplicações. Enfatizava ainda que “Não é positivo,
nem negativo. É zero.”, fazendo referência ao conceito milenar do nada Taoista.
O zero como “o início de tudo”. Lembrei-me muito destas palavras quando
deparei com o título do recém editado livro de contos de Manuel Jorge Marmelo,
mais ainda quando li, no conto que dá nome ao livro, que o protagonista do
mesmo resolvera desaparecer do mundo, fugindo da civilização para uma remota
ilha cabo Verdiana, passando a viver sob um cobertor esburacado de onde observava
o mundo em redor, lendo, escrevendo, tentando silenciar a sua voz interior e
aspirando, com todas as suas forças a transformar-se “num redondo e encantador
zero à esquerda”. Este redondo e, particularmente, “encantador” zero à esquerda
fez-me mergulhar na tal nota de rodapé de Paulo Abrunhosa e no seu “Manifesto”
que acima citei.
E vinha esta pobre alma, saindo de
uma apresentação do “Zero à esquerda” de que vos falo, ainda meia arrelampada a
matutar sobre a profundidade do zero literário – onde me revejo feliz e
encantadoramente redonda, como o outro, sem sequer precisar de me esconder sob
nenhum esburacado cobertor – sou detentora da mais fina capa de invisibilidade
que me é, aliás, muito útil na maioria das situações , permitindo-me ler,
escrever e atentar sobre o mundo sem fazer muito barulho de maneiras que ele, o
mundo, dificilmente dá pela minha presença ou perde muito tempo a pensar sobre
ela.
Mas dizia, vinha eu a atentar no
zero literário quando, já na rua, ao avançarmos na direcção do carro – eu mais
a minha comitiva – somos abordados por um personagem – eu aposto em Thomas
Pynchon (ah não conhecem? Leiam e aprendam que eu não duro sempre!) – que
celerado (e não, não é erro) suspendeu a marcha de um Audi, repito: um Audi, saltou
do seu interior e, em manifesto desespero, rente às lágrimas, nos pediu “um
euro”, tal e qual, para poder prosseguir viagem até ao seu destino: Gondomar,
disse.
E, após a necessária
contribuição para a “viagem”, no seu
mais lato sentido, do nosso “amigo”, fiquei-me feliz por perceber como a realidade
ultrapassa tão largamente a literatura, sobretudo no que toca a zeros tão
neutros quanto absorventes.
segunda-feira, setembro 23, 2013
Crónica de Segunda - O obituário do Poema
Hoje a crónica viu-se atravessada
pela morte ou a ideia da morte. Enquanto buscava assunto nas comezinhas coisas
que nos rodeiam a notícia da morte o poeta António Ramos Rosa fez-se,
subitamente assunto. Desde logo pela tristeza que o desaparecimento de um poeta
com a sua estatura, a sua profundidade deixa entre os que gostam de poesia e
apreciavam o seu jogo de luz e sombras, o seu rigor na palavra, a sua
pungência. Depois porque o vazio que deixa lembra o vazio que outros da sua
geração e até mais novos têm deixado nos últimos anos. Começam a desaparecer os
velhos poetas e vamos ficando um pouco mais órfãos, deixados sós, sem
referências, um pouco à deriva, parece-me.
Quando se morre aos 88 e se está
frágil e doente é-se mais compreensivo com a morte, sabemos que nalguma altura
temos de partir e aos 88 parece menos mal que aos 50 ou aos 60 ou noutras
idades ainda mais jovens, mas a um poeta não devia ser dado morrer. Leio num
jornal que, já hospitalizado e muito frágil, ainda no dia da sua morte, Ramos
Rosa foi capaz de escrever o nome da sua mulher e da sua filha e esta sussurrou-lhe
ao ouvido um seu poema “Estou vivo e
escrevo sol” e foi ainda capaz de o escrever também. Esta descrição pareceu-me
das coisas mais doces, das mais belas formas de despedida do mundo de um poeta.
Lembrei-me de ler uma descrição que Manuel Alegre fez de Sophia quando também
já ela muito doente e frágil era visitada por este que lhe lia poemas que ela
acompanhava e, já bem no fim da vida, apenas murmurava o ritmo, não as palavras
mas a sua música. Coisas que me deixam a pensar sobre o que pensarão os poetas
quando se preparam para partir. Em que pensaria Eugénio acamado, às portas da morte
ou o Pina já abatido pela dor e a medicação? Que poema traria ainda Urbano
dentro de si? Camões, que poema o alumiaria na escura solidão rente à morte? E Pessoa,
na náusea final?
Que poema acompanhará por dentro
os poetas no seu fim, que indizíveis palavas escreverão dentro da pele sem
poderem terminar o livro último, o último poema?
segunda-feira, setembro 16, 2013
Crónica de Segunda - Uma crónica de regressos
Reabro esta crónica de segunda,
como habitualmente, à mesa do café de sempre, onde tento encontrar o meu lugar.
Quando nos afastamos dos sítios
de sempre, seja por força da actividade profissional ou por outro acaso
qualquer, porque mudamos de terra, de horários ou apenas de hábitos, mesmo
quando é temporário e o tempo nem é assim tanto – como quando vamos de férias e
depois regressamos – ao tornamos ao
lugar de antes, temos sempre de reencontrar o espaço que é nosso.
O mesmo com as relações entre as
pessoas, as pessoas que passam na nossa vida e, de repente, se afastam ou nos
afastamos nós, se nos voltamos a reencontrar, seja em condições idênticas às de
antes ou noutras diversas e talvez menos
esperadas – uma chamada telefónica, um encontro inesperado ao virar da
esquina – de novo temos de nos reposicionar e perceber que o lugar que antes
tínhamos pode já não ser o que agora nos compete.
Mutatis mutandi a vida não espera cristalizada as nossas mudanças
de humor, se adormecemos, ao acordar, o mundo já não é bem o mesmo.
Vem tudo isto a propósito dos
lugares, da importância do espaço, o real e o ilusório, o orgânico e o virtual,
para o nosso equilíbrio interior.
Quando tornamos ao de sempre, a
chamada rentrée, à francesa, voltamos com a boa disposição dos augúrios para o
futuro, esperamos sempre que a rentrée seja um ponto de partida para algo
melhor, mais vasto, mais além.
Assim sou eu, no meu café,
escrevendo, auspiciando leitores novos, melhores poemas, melhores ideias e crónicas.
Antevendo, porém, o Outono e com ele as folhas desalojadas das árvores, como às
vezes nos regressos nos achamos desalojados do lugar que tínhamos como nosso.
Que lugar nos restará agora? Que
braços ainda nos abraçarão quando tornarmos? Onde foi que nos perdemos?
segunda-feira, agosto 19, 2013
Crónica de Segunda - Pequena crónica de férias e viagens.
Quando se torna de viagem trazemos
estórias , pequenas anedotas dos dias, provavelmente mais serenos, memórias de cheiros,
aromas invulgares, idiomas inalcançáveis, nomes de ruas que nos hão-de
perseguir na memória, praças solarengas, momentos fotografados, pedaços de
histórias que passarão a fazer parte do nosso ideário. Crescemos, somo
diferentes, talvez sejamos mais.
Quando tornamos de viagem
trazemos também a saudade do retorno ao lugar comum, o nosso, o eixo das nossas
contradições, tudo quanto amamos e desamamos, trazemos agora a lente nova com
que apreciamos o que já conhecíamos, à luz das novas experiências, dos locais
onde nos perdemos anteriormente, tudo o que antes já era é-nos agora um pouco
diferente. É, enfim, esse o interesse real da viagem, que só o é se servir para
que nos afastemos de facto por forma que ao tornarmos não sejamos já os mesmos,
sejamos mais, sejamos acrescentados de mundo e vivência e com isso estejamos um
passo além dos que ainda não viajaram.
O propósito da viagem é o
encontro com o novo para emparelhá-lo com o velho até equilibrarmos a nossa paz
com a paz do mundo e acharmos nele o nosso lugar.
segunda-feira, julho 22, 2013
Crónica de Segunda - Rejubilações
Sentada no café olho através da montra e o Verão continua esta frouxa coisa, apagada, que se tem mostrado pelo Porto, à excepçãode duas ou três semanas de sol refulgente, mimetizando os trópicos, que nos apanharam de supetão logo no estrear da estação. Agora, apagadinhoe cinzentão, com a temperatura indecisa de uma Primavera mal nascida, deixa-nos mordendo os dias à espera de férias na ilusão que rumando a sul as coisas se recomponham. Num assomo rápido aos títulos dos jornais percebo que o mundo não parece em consonância com a tez gris com que a meteorologia nos brinda, nem com a minha própria tendência depressiva face à folha sem palavras onde me aprazaria ver a crónica já escrita – e sobre o quê, meu Deus, sobre o quê? O mundo lá fora, dizia eu, rejubila!
Como se uma esplendorosa Primavera se esmagasse contra o vidro o mundo que leio nos jornais é uma só rejubilação. Os partidos do governo e seus apaniguados rejubilam por não caírem do poder, felizes de empurrarem com a barriga um programa de governo genial que felizes nos há-delevar ao segundo resgate, e ao terceiro e aos que mais vierem, tão certeiros eram os cálculos gasparinos que este se pôs a mexer apenas dois anos tarde de mais. Mas graças aos Senhor (aos senhores?) tudo muda para que tudo fique na mesma, as taxas de juros sobem e a dívida soberana também. Uma maioria,
um presidente, um programa de sucesso, assim sim andamos em frente, o
precipício aguarda-nos! Rejubilemos!
Em Inglaterra
um casal de príncipes vai parir uma benfazeja criança, que a acreditar nos
bruxos que por lá moram, há-de ser carismática e sensata – valha-nos ao menos
isso já que a sensatez parece cada vez mais um bem escasso e em vias de
extinção. Um povo inteiro, mais uns quantos mirones por todo o mundo aguardam
que a coroável cabecita saia, rejubilante também, das entranhas da real mamã. Ainda
mal gerada estava a criatura já o mundo se acotovelava para a fantasiar e
noticiar, uma imigrante indiana – a quem interessa isso? – mal compreendendo
que o mundo é um ninho de víboras mediáticas matou-se por falta de cautela,
outros chamar-lhe-iam incompetência, ou dito de outro modo foi troçada até à
morte por uns engraçados entertainers
televisivos australianos – benditos sejam pelas audiências, rejubilemos!
Ainda nos
jornais uma jovem norueguesa de 24 anos rejubila com o seu passaporte na mão
por ter sido perdoada, no Dubai, do terrível crime de se deixar violar. Toda a
ideia de uma pessoa ser violada, procurar a polícia para se queixar e acabar
presa e acusada por esse mesmo facto me deixa rejubilante, mal posso com tanta
alegria e jubilo!
Portanto talvez apenas eu, e o tempo
lá fora, não rejubilemos com tanta alegria que vai pelo mundo mas ao olhar
agora a página já cheia a cheirar a crónica completa quase me apetece também
rejubilar!
segunda-feira, julho 01, 2013
Crónica de Segunda - Amar-te-ei em Julho
É Julho, dêmos-lhe as
boas-vindas. Eu gosto de Julho. Julho é Verão, Julho é quente, em Julho
acontecem coisas fantásticas – como ministros que se demitem deixando uma onda
de risos e comédia em quase um país inteiro e um clima de pesada consternação em
três ou quatro especialistas do partido. Em Julho também sobem a ministras
senhoras conhecidas por lidarem com produtos económicos arriscados na sua
toxicidade com nomes estrangeiros que querem dizer “trocas” e vai daí
trocaram-nos, a ele por ela e a nós as voltas, mudando para tudo poder, da
melhor maneira, ficar na mesma.
Mas Julho não é só isto, em Julho
há calor, há férias, há praia, há cheiro a maresia entrecortado pelo cheiro de
Eucalipto a arder e, de todas as coisas extraordinárias que acontecem em Julho,
a mais pífia – também eu nasci em Julho, embora o acto do nascimento seja
sempre uma coisa extraordinária.
Julho é, aliás, o meu mês
favorito e, porque estas são escolhas que se fazem na infância, certamente que
para isso contribuiu o facto de estar em férias escolares, coincidindo com os fins
de ciclo, com o avançar de patamares académicos, no tempo em que o futuro era
ainda uma porta aberta para quase qualquer infinito que me aprouvesse e, a
ajudar à festa, ainda levava umas prendas catitas logo no dealbar do mês.
Agora os patamares são estreitos
e nem sempre coincidentes com Julho ou as férias grandes, o futuro é um túnel onde
já estou de viagem ainda que aqui e ali com bifurcações com cada vez menos a
escolher; as prendas são poucas e em geral menos proveitosas, sendo já uma boa
vitória quando não tenho de as empilhar no lote dos imprestáveis; envelhecer
não tem graça, dizem que aos anos somámos experiência e sabedoria, até que é verdade,
mas se olharmos bem, não é isso mesmo que nos faz mais infelizes? Pois se nos morrem
as ilusões, próprias da juvenil inexperiência, que nos resta para nos fazer
continuar?
Melhor ou pior, na conta dos
dias, este Julho entrou bem, vem com calor, já lhe tinha saudades que anos
últimos nisso do calor foram parcos, espécie de Verões arrependidos, a
espreitar aos soluços, e a mim já me faltava um Verão como os antigos, de
quando ainda tinha ilusões e menor número de Verões a festejar, um Julho acima
dos trinta graus, um Julho de abrir janelas e sair pela fresca da noite à espreita
de estrelas, e do zunir das cigarras, da janela aberta no carro, das
esplanadas, das conversas ao relento pela leda madrugada, a espreitar a lua,
das noites longas e do amor.
Sê bem-vindo Julho de calor,
contigo até me vai custar menos continuar a envelhecer.
segunda-feira, junho 24, 2013
Crónica de Segunda - Uma crónica de fim
Eu sei que já passaram muitos
anos mas há memórias que nunca mais nos largam da mão, coisas que ficam, a
lembrança de um cheiro, alguma coisa que nos faz sentir mais fundo. Era madrugada,
não consigo precisar a hora, mas era madrugada bem alta. Dali o S. João apenas
um eco de martelos ao fundo da minha tristeza, era tudo escuro, as estradas
desertas. Percebi que nunca mais, nunca mais o pim, pim, pim, infernalmente
adorável de gente em rodopio, feliz, louca, pelas ruas, nunca mais o cheiro da
sardinha, a alho-porro, o riso e gritaria, nunca mais. Tudo porque, no fundo da
escura madrugada que se abria, o meu caminho era o do fim. Os dias do fim são
quentes, a noite era quente como quentes eram ainda as noites naquele tempo e
porém o frio, dentro era o frio. Acordaram-me e eu tremia, tremia sempre sem
conseguir parar e eu queria, eu queria parar de tremer, eu queria ver-te, já que
era a ultima vez, ainda que já não me visses mas eu queria estar e estive, quase
até ao fim, até a um estertor que me assustou, uma regurgitação final, um passo
atrás que não perdoo até hoje e antes disso qualquer coisa que me tentaste
dizer e eu não percebi.
Depois foi encontrar o caminho do
regresso a casa, o táxi, os martelos ao fundo, uma noite de lágrimas quase
secas, ainda incertas. Finalmente acabou, a angústia, o sofrimento, os dias quentes
insuportáveis, as dores, a falta de ar, as promessas, as mentiras, acabou tudo,
já podemos ser normais outra vez e chorar se apetecer chorar, já não temos de
te enganar que vais melhorar, nem acreditar em todas essas mentiras que
deliberadamente te dissemos.
A manhã de S. João era a surreal
ressaca da casa mortuária onde não quis ver-te por ter a certeza que já não
eras tu, da certidão de óbito, da empresa funerária, uma fila de caixões
perfilados e o dono mostrando-me à direita e à esquerda as qualidades e preços
de cada um enquanto eu percorria como um general observando as tropas, prestes
a escolher o soldado a desmobilizar. Depois a escolha do texto, os preços do
jornal – a família tem o doloroso dever de informar que – e a inenarrável
história da fotografia. Se tinha fotografia? Sim, tinha. O homem a colocá-la
sob o cinzeiro atestado que servia de pisa-papeis – mas esta gente não entende?
Aquele gente não entendia que o que ali deixava de penhor era a tua fotografia,
a mais resistente memória do teu olhar, do teu sorriso, aquilo não era um
bilhete de autocarro para ficar defunto debaixo do cinzeiro! Devolvi-me a
fotografia – fique antes com o BI – disse.
E a mulher gorda da funerária, com
o seu vestido azul escuro de pintinhas brancas, que insistia em cumprimentar-me
com dois beijos e eu que insistia em fugir, afastar-me.
Não a conheço, senhora, largue-me, tomara eu nunca a ter conhecido,
percebe?
Lá fora a cidade entorpecida
dormia a noite festiva. Abençoada, ao menos estava em silêncio.
segunda-feira, maio 27, 2013
Crónica de Segunda - Reputação.
Aquilo que primeiro me prendeu a
atenção foi a pequena tatuagem em forma de flor, acho que era uma flor, que
tinha na região infra-clavicular à esquerda – avisem-me se estiver a ser
demasiado técnica nestas coisas da descrição de desenhos em regiões corporais.
Fruto do ofício ora sou demasiado hermética na linguagem ora sou demasiado
popular no sentido de ter a certeza que me faço entender. Adiante, dizia eu que
a tatuagem impressa no peito, a um bom palmo sobre a mama esquerda foi o que me
fez olhar para ela com mais atenção. Nem sei bem se é esse o termo, digo eu nem
sei se olhei para ela com alguma atenção, olhei foi para a tatuagem. Não porque
fosse grande, ou sequer muito vistosa, mas uma tatuagem, sobretudo em local à
vista, como o decote que trazia permitia, ainda que vagamente tapada na sua
vertente mais superior, funciona tão bem (ou tão mal, tudo vai da perspectiva
com que se encaram estas coisas) como uma cicatriz ou como um furúnculo ou uma
coisa ainda mais endemoninhada, como uma ranheta pendurada num nariz mal
acabado de assoar. O que quero dizer é que, qualquer uma dessas coisas, uma
tatuagem – seja esta entendida como uma obra de arte, um incontornável adorno
ou uma marca tribal ou de outro simbolismo – um sinal no corpo, uma ferida ou
cicatriz ou uma coisa que não devia estar lá como uma ranheta que fazemos de
conta não ver, são coisas que nos prendem a vista. A partir do momento que nos
perdemos a olhar o item em causa ficamos para sempre fascinados pelo mesmo e
jamais conseguimos conter o olhar furtivo, atento, o olhar que não consegue,
depois disto, concentrar-se em mais coisa alguma, vertido todo que está em
tentar compreender o símbolo ou esquecer a presença, em tentar parecer natural.
Foi isso, enfim, que me
aconteceu, e ali fiquei a tentar discernir se aquilo era uma flor ou um pássaro
exótico, se na parte inferior vislumbrava pernas ou apenas um rabiosque e mais
adiante a tentar perceber porque diabo uma pessoa que não tinha colada uma inusitada
ranheta ao peito, que não tinha ali mesmo uma cicatriz de um acidente, nem um
sinal esquisito ou uma verruga a pedir tratamento, alguém que tinha antes,
muito provavelmente uma pelezita pálida e macia, se lembrou de a fazer tatuar
com aquele desenho indeciso entre flor e pássaro, tintado a preto. Ocorreu-me
que talvez fosse para que papalvos como eu ficassem plantados a olhar
infinitamente um ponto neutro enquanto o mundo passava ao largo.
“É tudo por uma questão de
reputação” – disse ela. Claramente não percebi o sentido, não ouvi toda a
conversa, atenta que estava ao raio da tatuagem, mas fosse lá o que fosse tudo
se resumia à tal da reputação.
segunda-feira, maio 06, 2013
Crónica de Segunda - Vamos todos dançar nus na rua!
Dedicada ao J.M.
Faz-me falta o mar para respirar,
tenho dificuldade, na sua ausência, em compreender o limite que o céu deve
traçar no horizonte. Devo ser eu que sou doida (doida, doida) e não entendo o
mundo sem aquele pedaço de água indecisa, ora azul, ora verde, ora azul, ora
verde, a marulhar no fundo de um ou outro, também indeciso e doido (doido,
doido) pensamento.
Faz-me falta o mar ao fundo do
meu por-de-sol quando no café as mesas se arrastam já e se arrastam os meus
olhos pelos papeis – tanta tinta gasta, senhores, e a propósito de nada – somo agora
melhores ou mais felizes? – se não fosse o mar ao fundo talvez eu ficasse assim
mesmo parada e doida (doida, doida), à espera da onda de espuma e insensatez.
Faz-me falta o mar para lavar-me
a solidão e o medo e o desejo. Tudo isto assim lavado a sal me parece menos
mal. E, entretanto, se não acharmos o mar pelo caminho, ergamos então um copo
loucura e – porque não? – vamos todos dançar nus na rua!
segunda-feira, março 18, 2013
Crónica de Segunda - O mistério dos velhos.
De que falarão os velhos senão de
coisas velhas? Histórias puídas, coisas rotas, farrapos de memórias que se
aguentam no vendaval do esquecimento. Que hão-de pensar os velhos, a sós com o
seu pensamento? Sobre as coisas que já não há ou antes as que eles recordam sem
saber se as recordam ou se as inventam se é certo que já ninguém do presente –
ah o futuro, antes tão imaginado! – se lembra, excepto outros velhos como eles,
talvez também já mais invenção que memória, como saber? Como saber se o que
pensam realidade esquecida ou apenas imaginação delirante, senil?
Três velhos numa mesa de uma
confeitaria, lancham e conversam lentamente, à velocidade dos velhos, devagar. Observo-os.
São, aliás, duas velhas e um velho, um casal suponho eu, e talvez a irmã dela,
são parecidas. Devagar, partem em pedaços os bolos de arroz, debicam as
meias-de-leite e conversam também lentamente. De que falarão os velhos quando
estão sós? De coisas velhas, memórias antigas? Confundirão os nomes, as
pessoas, o antigo e o moderno? Lembrar-se-ão de um tempo de que mais ninguém
lembra? Contarão as histórias dos mortos que arrastam presos ao olhar, o olhar
que fica parado nas paredes a ver coisas que mais ninguém vê – um filho morto,
a mãe, o pai, os irmãos, amigos tantos, enfileirados no silêncio da eternidade.
Que pensarão os velhos, sós, entre eles, que como Dante “nunca imaginaram que a
morte tivesse levado tantos”? Contarão os dias em que também o seu lugar à mesa
da confeitaria ficará vazio, substituídos agora pelo infinito e definitivo
silêncio?
Na estação de metro, sobre o
obliterador, alguém deixou perdida uma luva de pele. Tem um aspecto gasto,
bastante usado, meio rompida, não sei se a perderam assim, desirmanada, talvez
algum velhote a tentar agarrar o passe perdido no fundo do bolso do sobretudo,
atrapalhando-se com tantos dedos luvados. Ou talvez alguém a tivesse abandonado
por velhice e desnecessidade. Nunca o saberei, como não sei de que falam os
velhos entre si, talvez de luvas perdidas ou abandonadas, logo uma luva, algo que
tão intimamente apertamos contra os dedos.
segunda-feira, fevereiro 25, 2013
Crónica de Segunda - A saudade é uma doença crónica
A saudade é uma doença crónica. Vou
aprendendo, com o tempo e a vida, que assim é. Só existe em português, a
palavra dizem-me, e eu, que não conheço do mundo todas as línguas, senão duas
ou três, acredito-me, ficando-me nesta muito portuguesa firmeza de propósitos
de ser fiel à nossa própria melancolia,
Ter saudades nem sequer é mau,
significa que tivemos algo que nos foi tão agradável que gostaríamos de repetir
ou de nunca deixar de ter. Ter saudades de um registo parado, de uma situação
já ida, é um estado depressivo de português resignado e triste esperando a miséria
do seu fado, que fica a olhar para trás carpindo as mágoas do que já não há.
Porém, ter saudade de alguém ainda que sendo um sentimento de incompletude, às
vezes marejado a lágrimas, não deixa de ser um bom sinal, reportando-se a
alguém que de tal forma nos terá iluminado, que estando ausente a esperamos, a
desejamos, a recordamos, lembrando as coisas boas que sentimos na sua
companhia. Por isso não se cura a saudade, é doença crónica que temos de
transportar, só se trata com a presença mas quando esta termina, ou se de todo
não for possível, fica este buraco, este vazio, esta insuportável melancolia,
ao ponto de se transformar em dor e ser doença por isso mesmo, por doer e, como
de amor, se pode morrer de saudade.
Quando alguém me diz “tive saudades tuas” fico feliz, percebo que nalguma altura fui para alguém motivo de amor, ao ponto dessa pessoa sofrer por mim esse mistério ambíguo da saudade e tenho esperança que ao virar as costas o fenómeno se possa repetir para que eu possa talvez querer voltar.
segunda-feira, fevereiro 18, 2013
Crónica de Segunda - A verdadeira!
“É sexta feira, yeah!” A música,
ainda recente, de Boss A.C. fica-se nos ouvidos e trás-nos, como habitual, um
ímpeto de fim-de-semana. São centenas as musiquetas, umas melhores outras
apenas cantilenas infantis, a glosar os dias da semana e, pasme-se, a glorificação
é sempre relativa à sexta-feira, pela proximidade dos dias de descanso ou mesmo
ao próximo fim-de-semana. Já a segunda-feira é miseravelmente desprezada, como
uma espécie de pior dia da semana, algo a evitar, um patamar a passar rápido,
coisa a não deixar memória. A única música que recordo versando a
segunda-feira, de seu nome “Monday, Monday” dos The mammas and the pappas, esperançosa
no início acaba por não ter um final feliz para o dia da semana, descrevendo-o
como uma memória de choro.
Toda a ideia, não só na semana
mas em tudo o resto, de ser segundo, secundário, de segunda é uma ideia a
evitar. Na sociedade competitiva em que vivemos não ser o primeiro é ser o
último ou, na melhor das hipóteses o primeiro dos últimos o que, certamente,
não chega para nos avolumar o ego. Ser segundo, secundário, é depender e
ninguém deseja ser dependente. O mesmo com o pobre dia da semana que é nada mais
nada menos que o segundo, logo após o Domingo, e só é primeiro se o
considerarmos o iniciador de um chorrilho de lamentos e misérias concernentes
com o facto de ter terminado o escasso tempo de remanso entre semanas de
trabalho. Na verdade, a páginas tantas, percebemos que vivemos a vida
procurando que passe depressa, de semana
em semana para atingirmos dois, às vezes apenas um, dia de descanso.
E estas crónicas tão singelas,
pobretanas de literatura, são de segunda, como uma carruagem de comboio, mais
fria e desconfortável, sem luxos. Dir-me-ão que não é importante, que qualquer que
seja a carruagem, desde que o comboio não descarrile, nos leva ao mesmo destino.
Porém, como em tanto na vida, interessa em geral mais a viagem do que o destino
onde chegamos.
quinta-feira, dezembro 20, 2012
Antes que o fim do mundo nos aconteça.
Antes que o mundo desate por aí a
acabar há que escrever, deixá-lo por escrito, ao mundo, antes que este se
esfume, se auto-degrade, desapareça sem deixar memória. E nós temos esta ideia
que a memória é que é importante, a posteridade, o que fica de nós. Que ficará
de nós depois do fim-do-mundo? O que fica do que somos, ou do que fomos? As
coisas que amamos, o que será delas, sobreviverão elas ao apocalipse anunciado?
Que será do amor que fizemos ou do que esquecemos de fazer?
Palavras, palavras, palavras,
deixa as palavras no papel, escreve-o, deixa-o pintado, tingido, o branco papel
a ficar escrito, já que não sabes fazer mais nada com utilidade verdadeira
escreve. E isto que escreves tem alguma utilidade? É bem certo que não. E eu de
novo a lembrar-me do Pina e do poema do homem da repartição, aquele que
anunciava que a poesia ia acabar e que os poetas seriam colocados em lugares
mais uteis. Não me liguem, divago, deve ser já o efeito do fim do mundo em mim.
Que será do meu amor quando o
mundo se for e eu não estiver aqui para to dar e tu não estiveres cá para o
receber? E que importância tem o mundo mesmo se é do Amor que temos que
falamos, não é o Amor mais longo e mais forte que o mundo, qualquer mundo? Não
é, só por si, o Amor um mundo em si mesmo, um mundo dentro do mundo, a única
coisa de verdeiro interesse no mundo?
E de novo eu a permitir que as
vagas memórias de frases soltas me assaltem “que farei quando tudo arde?” – Sá
de Miranda, “Só me faltavas tu para me faltar tudo” – o Pina outra vez, estes
que já foram deste mundo e o mundo os perdeu sem os perder verdadeiramente
terão sentido tudo quanto todos nós vamos sentindo, exactamente antes de
perderem o mundo ainda que a eles o mundo nunca os tivesse perdido por
permanecerem em obra e a obra que deixaram que foi senão Amor? Estas frases que
me perseguem, e decerto os perseguiram, o que foram senão Amor, do Amor, pelo
Amor?
Quero-te dizer, meu Amor, que te
Amo, antes que o fim do mundo nos aconteça.
segunda-feira, dezembro 17, 2012
Crónica de Segunda - A insustentável leveza da identidade*
Esta coisa da folha em branco e
da crónica por escrever é sempre um dilema que não deve andar longe à da
angústia do guarda-redes no momento do penálti. Vou-me, interiormente,
comprometendo com uma crónica por semana mas sempre a isso vou fugindo com a
desculpa, que nem é mentira, da falta de tempo, mas sonegando sempre que as
várias ideias que vou tendo para expressar em crónica são muitas vezes
obnubiladas pela força maior da realidade, daquelas coisas comezinhas que não
se escrevem.
Ponderei explorar nesta crónica
um assunto que me surgiu “por acidente” há dias, sobre a importância, ou a sua
ausência, do nome que transportamos. "O
que há num nome?" perguntou Shakespeare. Importa tanto e afinal tão pouco.
É por ele que respondemos porém não nos é dado escolhê-lo, cola-se-nos à pele
como uma outra pele, faz parte de nós e no entanto é-nos estranho. Seríamos outros,
diferentes, se nos chamássemos outro nome? Provavelmente
não. Foi isto que pensei um destes dias, porém, parece-me mais interessante
explorar nesta crónica a importância da identidade de uma forma mais lata. O
nome como forma de identidade sim, mas que importância tem? O corpo, como forma
identitária parece assunto mais sério, é ele que nos representa melhor e mais
forte do que um simples nome. O nosso aspecto físico torna-nos isso mesmo,
físicos e presentes, passámos a ser reais e não abstractos, que é aquilo que
somos quando apenas o nome nos representa, uma assinatura, uma coisa distante. Passamos
a ter sorrisos e esgares, rugas, pele com textura, cabelos ou a sua ausência,
cor de pele e o seu odor. Tudo isto é identidade.
Quem, como eu, tem um ar banalíssimo, um aspecto igual a toda a gente,
não me distinguindo sequer por uma vestimenta exótica ou um piercing no nariz,
associada ao facto de não gostar de me pôr em bicos de pés, sofro com alguma
frequência do que anedoticamente chamo “creme da invisibilidade” que passa por
ser apresentada a alguém, por vezes mesmo partilhar uma mesa de conversa e no
dia seguinte ou poucos dias depois ser completamente ignorada por essa pessoa
se nos cruzamos uma outra vez. Tem essa “desidentificação”, se me permitem o
neologismo, algumas vantagens como seja poder observar quem tão bem me ignora,
sem dar nas vistas, é como existir sem existir, como estar num lugar público
sob uma cortina que nos protege da observação alheia enquanto nós podemos
continuar a observar. Porém, bem vistas as coisas, se os outros nos perdem, se
perdem de nós o nosso aspecto, o nosso olhar, o nosso sorriso, as nossas mãos, enfim
aquilo que nos caracteriza, certamente já perderam o que fazemos e dizemos que verdadeiramente
nos marca e poderia deixar nos outros marca, portanto também não são dignos de
nos manterem numa qualquer lista imaginária de nomes conhecidos. O que valerá o
nosso nome se o que fazemos ou aquilo que somos nada vale?
* Título composto de dois títulos de Milan Kundera - "A insustentável leveza do ser" e "A identidade"
sexta-feira, novembro 02, 2012
Dia de Finados
Hoje é o dia dos mortos. De todos os mortos, os que transportamos ao longo do tempo dentro de nós.
Já enxaguamos as lágrimas do rosto,
do mundo,
apenas discretamente a salsugem
se nos pega ainda,
importunando-nos de saudade,
amarrando-nos a dor às pernas
e ao peito.
Lugares sem importância.
Tolhem-nos apenas o passo
e a respiração,
nada sem o que não possamos continuar.
Já enxaguamos as lágrimas do rosto,
do mundo,
apenas discretamente a salsugem
se nos pega ainda,
importunando-nos de saudade,
amarrando-nos a dor às pernas
e ao peito.
Lugares sem importância.
Tolhem-nos apenas o passo
e a respiração,
nada sem o que não possamos continuar.
Continuemos então.
Pela frincha da janela
o vento é ainda igual,
um suspiro,
ou a tua respiração velando
cada dia por um outro dia igual.
Pela frincha da janela
o vento é ainda igual,
um suspiro,
ou a tua respiração velando
cada dia por um outro dia igual.
segunda-feira, outubro 29, 2012
Crónica de Segunda - Um Poeta pelos pulmões.
In memoriam Manuel António Pina
Dedicada ao Carlos Magno
e à Clara Henriques
Agora os dias são mais curtos,
não sei se pela força do calendário, a aproximação da Invernia, se por nos
teres deixado assim, tão desavisadamente, a olhar o vazio, o buraco negro por
onde partiram as palavras. Levaste-as contigo, decerto.
Agora que aqui não estás, o que
dizer (ou pensar, que sei eu?) sobre a vaga de frio que vem com o Outono, da
gramática que nos falta porque nos faltas, dos poemas todos que ainda estão por
escrever?
Agora que a cidade sussurra a tua
ausência, as bibliotecas choram-te em silêncio, “porque o resto é silêncio (que resto?)”, elas sabem que não
voltarás a dar nome às palavras, nem voltarás a abrir-lhes os livros, que nem
Milne, nem Borges nem Céline te trarão
de volta dos mortos agora que talvez tenhas achado “um
lugar onde pousar a cabeça”.
Depois de tu partires têm
acontecido coisas estranhas, o sol, que andava arredio, veio espreitar por
entre as nuvens, a certificar-se que seguirias o caminho da luz, há amigos que
discutem pensos da alma por sms e
sonham com garças reais em paisagens de rio, outros que se encontram em
estações de serviço de auto-estrada para discutir filosofia e literatura.
Talvez estas coisas já acontecessem mesmo antes da tua morte, eu sei, mas não
lhes dávamos o devido valor, talvez esperássemos que viesses tu fazer delas uma
crónica ou um poema, talvez um poema onde coubesse uma pétala, ou talvez não,
talvez um que um de nós despetalasse ou um que nos explicasse como se “entra no amor como em casa”.
“Aos Domingos não se enterram os
pobres” disseram, talvez por isso não te enterraram. Esperava que houvesse
honras de estado na tua partida, todos os que não te leram, um presidente da républica compungido, um
primeiro-ministro lacrimejante, dois ou três ministros de gravata preta e
discurso preparado, a bandeira nacional a meia-haste e uma salva de tiros pum,
pum, pum, a marcar o evento. Não houve. Não te ofereceram essa ironia final com
que glosar. Fiquei com pena pelos tiros que haviam de assustar gaivotas em múltiplas
direcções, ficaria mais estranho ainda o céu, com um bando de pássaros perdidos
e agitados a esbracejar (têm braços as gaivotas?).
“Aos Domingos não se enterram os
pobres”. Dois poemas, teus é claro, antecederam a entrada na pira onde todos os
poemas e todas as palavras ardem, como antes ardiam em ti. É apenas isto, nada
mais do que isto, pó e cinzas, nada mais.
“É cada vez mais pesada a paz dos cemitérios”, dirias. Afasto-me
devagar, a chaminé liberta os seus primeiros vapores, o fumo incomoda-me,
faz-me tossir e pela primeira vez dou-me conta que acabara de me entrar um Poeta
pelos pulmões.
segunda-feira, outubro 15, 2012
Crónica de Segunda - A crónica de Natal
Dedicada ao meu editor
e amigo Carlos Lopes,
por inconfessáveis motivos que só nós sabemos!
Cá está ela, a Crónica de Natal.
Perguntar-se-á o estimado leitor, que sei atento, que diabo me terá passado
pela moleirinha para em meados de Outubro os presentear com uma insonsa e
despropositada crónica natalícia. Insonsa porque as de Natal o são sempre,
temazinho batido, até porque acontece todos os anos, conta a mesma História e,
mais previsível ainda, ocorre sempre no mesmo dia do mesmo mês, portanto nada
no Natal estimula a imaginação. Despropositada porque, atendendo ao atrás
exposto, estas crónicas embora comuns, quase diria clássicas, não aparecem em
Outubro, quando ainda nos estamos a recompor do fim do Verão mas sim em pleno
Inverno e são aliás muito boas, quando impressas em papel, para servir de
acendalhas às lareiras de quem as tem.
Estou certa que a esta hora, se
ainda não desistiram de me ler, atribuirão a minha estranheza e loucura ao
discurso Gasparino ouvido há horas, até porque pelo Natal os reis magos, entre
eles o Gaspar, aparecem sempre com as prendinhas; atribuíla-ão à crise e à
monumental – sim por favor, deixem-me acrescentar uma inovação à crónica,
colossal e enorme estão, como o tema do Natal, no limite da paciência dos
santos – miséria a que o País real está lançado. Tenderão a pensar que me
afoito a escrever a crónica de Natal a dois meses de distância pela dúvida de
entre subidas de impostos e mitigações de ordenados e subsídios, arrasamento de
dias de férias e feriados, pela dúvida, dizia, de saber se este ano haverá
Natal.
Na verdade as minhas razões são
bem mais prosaicas, prendem-se sobretudo com provar que, como temática, o Natal
já deu o que tinha a dar. Quem, depois de dois mil e tal anos de vastas
tentativas, vai agora inventar a nova maneira de contar a História do Menino
Jesus? Inventar-lhe uma nova manjedoura? Chamar os burros e as vacas pelos
nomes, atendendo ao facto de nunca os ter visto descritos na literatura que
consultei? Descortinar entre os reis magos qual trouxe o quê de oferta ao
Menino? – Aposto que o Gaspar foi o que trouxe a mirra, especialista em tudo
mirrar: os ordenados, os subsídios, os empregos, enfim a economia! O ouro
sabemos que não foi o António Sala, mas aposto que todos desconfiamos que ele
por lá andasse disfarçado de Belchior. Enfim, não há maneira, pois se nem no
Pai Natal conseguimos inventar – a coca-cola não mudou de cor e um Pai Natal
vestido de azul semelharia um strunf. Creio apenas que este Natal a coisa
poderá melhorar no sentido das SMS, previsivelmente serão menos, não há guita!
segunda-feira, setembro 24, 2012
Crónica de Segunda - Heroísmo
Permiti-me hoje percorrer a pé,
desde lá de trás, a rua do Heroísmo. Há muito tempo que não o fazia, faz-me
sempre pena. Pena ou melancolia, nunca sei bem, creio que padeço disso desde o
tempo em que deixei o liceu e com isso aquela mesma zona como âncora. Mas o
tempo fez enriquecer a sensação. A mistura de tudo o que desapareceu e de tudo
o que sobrou. O que desapareceu e deixa saudade e o que sobrou quase tudo
decrépito, cinzento e bafiento, uma rua que tem laivos de cidade fantasma
dentro da cidade, casas ao abandono, lugares cheios de vazio.
O palacete onde em tempos estudei
tinha sempre o portão fechado, acho que havia uma tabela de basquete pendurada
nele e, se bem me lembro, ninguém lá jogava nada, no meu tempo, pelo menos.
Agora os portões estão abertos, as marcações do chão desapareceram e lá dentro
um carro de polícia. É da polícia aquilo agora. Questiono-me, será que as
escadas que levam ao último piso ainda rangem ameaçando ruir? Será que quando
as portas se fecham um ou dois agentes tentam a sorte na tabela de basquete?
Será que os corredores ainda se lembram dos beijos, das estórias, da história,
da geografia, da biologia e do inglês? Avanço mais e desvio o olhar para Nova
Sintra, de novo me parece ouvir o comboio ao longe e sentir o vento embiocado
nas folhas das árvores nas Águas. Os furos das aulas – feriados,
chamávamos-lhes – serviam também para o, já à época melancólico, tour ao
espreita comboios – pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra lá vinham eles de não
sei de onde, lembrando-me o Verão, que a mim era o que me lembravam. “Está a dar
entrada na linha número dois o comboio regional com destino a Coimbra. Este
comboio tem paragem em todas as estações e apeadeiros”.
Estugo o passo, os cafés onde
parei, talvez comprasse ali o jornal mas é domingo, está fechado. Tudo é agora
diferente e igualmente parado. Uma sensação de abandono, de orfandade, um vidro
partido dá de esguelha para uma cave e engrandece o cheiro a vazio, ups - bafio.
O fotógrafo, o barbeiro, o horto, adiante o STOP já morto e enterrado várias
vezes, onde eu comprava discos – havia discos no meu tempo, sou tão antiga! – e
ia ao cinema e outras tantas coisas de que mal me lembra já.
Na esquina o museu que antes foi
sede da PIDE, embora sabendo que o nome deriva das lutas liberais do D. Pedro
contra o D. Miguel, penso que Heroísmo assenta bem ao nome da rua por ali terem
estado prisioneiros os heróis que lutavam pela liberdade. Era ali que o Gomes
Ferreira vinha visitar o filho preso e dali partiu para alguns poemas. A
Virgínia de Moura em estátua para que não esqueçamos o cravo de pedra. Conheço
um PIDE, quer dizer, um ex-PIDE. Dizem que o foi por pouco tempo, que não se
via a torturar e que quis saír, ainda assim não nutro por ele qualquer simpatia.
Há dias diz-me minha Mãe – repara que ele agora anda sempre de máquina
fotográfica, achas que andará a espiar o povo? – disparate, anda agora! Um
reformado a entreter-se com fotografias, eu mesma que trago quase sempre uma
digital. Pelo sim, pelo não, passo por largo, bem largo.
Frente ao cemitério um homem
conduz pela trela, melhor seria dizer que era ele o conduzido, dois cães de
grande porte – um lavrador e um outro ainda maior, de raça incerta, provável
cruzamento com serra da estrela. Apesar do tamanho tinham um ar pacífico. Um
gato cinzento, listado, esgueira-se sob uma barraca de flores, não vá o diabo
tecê-las… heroísmo.
Heroísmo, heroísmo o tanas!
Enquanto me lembrar da dor que me dá não voltarei a passar aqui tão cedo!
Esgueiro-me sob uma barraca de flores ou outra coisa qualquer onde lograr caber
para me esconder.
segunda-feira, setembro 03, 2012
Crónica de Segunda - Uma derradeira crónica de Verão
Que ainda agora era Agosto e está
calor e há quem esteja de férias e não lhe apeteça pensar. Sobretudo há quem
não queira, frente a uma paisagem idílica de mar ao fundo, ser lembrado dos
impostos, dos subsídios que não há, dos cortes nos ordenados, dos malefícios da
troika, do desemprego que aumenta e do país que se afunda, condenado que está ao
fracasso económico e social, sucumbindo em silêncio qual doente terminal, respirando
ruidosamente, com dificuldade acrescida até ao suspiro final. Há que respeitar,
pois, estes momentos finais de sossego e paz, amanhã será outro dia e a vida
real há-de inundar-nos até, também nós, não conseguirmos mais respirar.
Há que dar balanço à cronica e
oferecer alguma paz de fim-de-verão aos leitores que esperam ainda pelas
esplanadas os raios últimos da ilusão estival. Avanço então pela crónica como pelo mar, dando
a cada braçada de palavras uma rajada de azul, como se as gaivotas que
esbracejam aqui , junto de onde estou, fossem de facto gaivotas de maresia e
não estas aves infectas, rapinares, que cobrem de dejectos os monumentos e as
ruas e se alimentam do lixo que, displicentes, espalhamos pela cidade.
Tento então amordaçar a crónica,
não bem a crónica, mas a realidade que esperneia dentro dela. Há que anestesia-la,
metê-la a correntes, não a deixar passar, até que o estio se desencontre e
deixe que o frio nos envolva e nos devolva o Outono e a vida real.
Pouso a caneta, olhos no mar,
pausa, retomo a escrita, sinto o vazio, torno a olhar o mar… ou a memória dos
teus olhos a olhar o mar dentro de mim.
segunda-feira, agosto 20, 2012
Crónica de Segunda - Uma crónica parva. Parva, parva, parva!
Meio de Agosto, o melhor tempo da silly season, a estação parva. Se lhe chamam assim alguma razão hão-de ter, tudo porque está calor e meio mundo vai de férias esquecendo os assuntos sérios e mantendo o neurónio adormecido.
Eu, que não estou de férias, e, pelo contrário, regresso das minhas com a
gana de me agarrar à crónica mas sem saber o que pôr nela em tal época de alta
estival e baixa intelectual, dou por mim a perceber que coisas parvas, a dizer
com a estação, para descrever na crónica é o que mais há por aí. Assola-me até,
de repente, a vontade de transformar as minhas Crónicas de Segunda em Crónicas
Parvas.
É preciso muito pouco para encontrar a temática, um simples passeio na
baixa da minha cidade chega para ocupar toda a crónica. Começo numa livraria – “As
setes chaves da cura” – nem abri o livro, apenas lhe apreciei o título e a
autora – Cristina Candeias – e penso “ah, a silly season no seu melhor!”, a
cura tem chaves e são sete, felizmente há uma bruxa que as conhece e,
generosamente, partilha em livro. Pobre de mim a arrastar-me seis anos, seis,
de cadeiras infindáveis e sem equivalências automáticas, arrancadas uma a uma
com o queimor neuronal, mais dois anos de estágio, mais cinco de especialidade
e mais uns poucos de prática depois de tudo isso e ainda não dei com o estupor
das chaves – faltou-me este manual! Vou por na lista das compras.
Saio da livraria e caminho pela rua, um mendigo cego, com a sua bengala
agachava-se no chão, aflito, tacteando o chão com a mão à procura de uma moeda
pequena que lhe havia caído. Solícito, um velhote, coloca-lhe a mão no ombro
apontando com o indicador na direcção da moeda caída “está ali, está ali!”,
estou certa que foi muito útil. O cego, pelo menos, ia agradecendo enquanto
continuava às apalpadelas.
Último episódio – sento-me no cabeleireiro esperando vez e não resisto a
folhear um exemplar da dita imprensa cor-de-rosa mas logo me assalta uma forte
impressão de cinzento. Um título “irresistível” salta-me à vista “Como se
livrar dele depois das férias. Termine uma relação sem remorsos.” Não resisti a
ler as tão preciosas instruções para nos livrarmos de alguém que goste de nós
como se de um empecilho mal cheiroso se tratasse, um pechisbeque comprado em
saldo que queremos ofececer a alguém de quem não gostemos. Que melhor
literatura estival senão aquela que nos ensina coisas tão uteis?! Os truques infalíveis
passavam por marcar jantares românticos aos quais se falta, não responder às
mensagens e depois dar como desculpa o esquecimento; enxovalhos públicos com
confissões de falsas intimidades menos abonatórias e humilhações frente aos
amigos. Tudo muito fácil e, afinal, demasiado óbvio, digo eu. Dá-me ideia que
manuais para instruir a humilhar o próximo são desnecessários, qualquer um de
nós, vasculhando no pior de si, certamente conseguiria encontrar sem mestre,
mesmo na mais parva das estações, a melhor maneira de ser rude e imbecil no
final de uma relação, afinal gente rude e imbecil, e não só no final de
relações, é o que mais há para servir de modelo. Começo a pensar que se calhar
são os habituais leitores destes pasquins. O que eu ando a perder por não o
ser! Um destes dias ainda vou querer acabar uma relação e acabo aos abraços ou
assim! Que parva eu sou, ainda pior que a estação!
segunda-feira, julho 02, 2012
Crónica de Segunda - Do desapego e do desamparo
Ando há séculos para escrever
esta crónica. Não esta exactamente porque é sempre outra a crónica que vou
pensando e a que consigo depois verter no papel (sim, é no papel que escrevo e
só depois “computo”).
O que me leva à crónica é o seu
título, parto dele muitas vezes e desta feita assim foi. A aliteração, candente, adocicada, do título
levar-me-á ao território dos afectos onde pretendo chegar. “Do desapego e do
desamparo”, não posso deixar de lembrar Jane Austeen cujas traduções dos
títulos de algumas das suas obras mais sonantes lhes fazem tão pouca justiça.
Se “orgulho e preconceito" ou "sensibilidade e bom senso” são boas
traduções literais, nada dizem sobre a fonética aliterante, a poesia, que há em “pride and prejudice” ou
“sense and sensibility”, títulos não escolhidos por acaso pela sua autora.
O mesmo faço eu, quer dizer,
tento fazer, para atingir o leitor no centro do peito com este “do desapego e
do desamparo”. Dengosamente, delicadamente, desalinhando o destino, dilacerando
a crónica.
Todos nos desamparamos e às vezes
nos desapegamos, não necessariamente por esta ordem. A imagem morta do antigo
amante que antes nos queimava o peito hoje a desfazer-se – o desapego, o abraço
que antes nos tolhia de tão forte, hoje desmembrado, deixa-nos à solta, pernas
bambas face ao mundo – o desamparo.
Sozinhos no mundo desde a
nascença, somo todos um pouco assim, frutos do desapego, filhos do desamparo.
Se ainda me amas, não quero
saber, de ti me desapego. Que farás de mim e da memória do teu desamparo?
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