segunda-feira, maio 27, 2013

Crónica de Segunda - Reputação.

Aquilo que primeiro me prendeu a atenção foi a pequena tatuagem em forma de flor, acho que era uma flor, que tinha na região infra-clavicular à esquerda – avisem-me se estiver a ser demasiado técnica nestas coisas da descrição de desenhos em regiões corporais. Fruto do ofício ora sou demasiado hermética na linguagem ora sou demasiado popular no sentido de ter a certeza que me faço entender. Adiante, dizia eu que a tatuagem impressa no peito, a um bom palmo sobre a mama esquerda foi o que me fez olhar para ela com mais atenção. Nem sei bem se é esse o termo, digo eu nem sei se olhei para ela com alguma atenção, olhei foi para a tatuagem. Não porque fosse grande, ou sequer muito vistosa, mas uma tatuagem, sobretudo em local à vista, como o decote que trazia permitia, ainda que vagamente tapada na sua vertente mais superior, funciona tão bem (ou tão mal, tudo vai da perspectiva com que se encaram estas coisas) como uma cicatriz ou como um furúnculo ou uma coisa ainda mais endemoninhada, como uma ranheta pendurada num nariz mal acabado de assoar. O que quero dizer é que, qualquer uma dessas coisas, uma tatuagem – seja esta entendida como uma obra de arte, um incontornável adorno ou uma marca tribal ou de outro simbolismo – um sinal no corpo, uma ferida ou cicatriz ou uma coisa que não devia estar lá como uma ranheta que fazemos de conta não ver, são coisas que nos prendem a vista. A partir do momento que nos perdemos a olhar o item em causa ficamos para sempre fascinados pelo mesmo e jamais conseguimos conter o olhar furtivo, atento, o olhar que não consegue, depois disto, concentrar-se em mais coisa alguma, vertido todo que está em tentar compreender o símbolo ou esquecer a presença, em tentar parecer natural.
Foi isso, enfim, que me aconteceu, e ali fiquei a tentar discernir se aquilo era uma flor ou um pássaro exótico, se na parte inferior vislumbrava pernas ou apenas um rabiosque e mais adiante a tentar perceber porque diabo uma pessoa que não tinha colada uma inusitada ranheta ao peito, que não tinha ali mesmo uma cicatriz de um acidente, nem um sinal esquisito ou uma verruga a pedir tratamento, alguém que tinha antes, muito provavelmente uma pelezita pálida e macia, se lembrou de a fazer tatuar com aquele desenho indeciso entre flor e pássaro, tintado a preto. Ocorreu-me que talvez fosse para que papalvos como eu ficassem plantados a olhar infinitamente um ponto neutro enquanto o mundo passava ao largo.
“É tudo por uma questão de reputação” – disse ela. Claramente não percebi o sentido, não ouvi toda a conversa, atenta que estava ao raio da tatuagem, mas fosse lá o que fosse tudo se resumia à tal da reputação.

segunda-feira, maio 06, 2013

Crónica de Segunda - Vamos todos dançar nus na rua!

 
Dedicada ao J.M.
 

Faz-me falta o mar para respirar, tenho dificuldade, na sua ausência, em compreender o limite que o céu deve traçar no horizonte. Devo ser eu que sou doida (doida, doida) e não entendo o mundo sem aquele pedaço de água indecisa, ora azul, ora verde, ora azul, ora verde, a marulhar no fundo de um ou outro, também indeciso e doido (doido, doido) pensamento.

Faz-me falta o mar ao fundo do meu por-de-sol quando no café as mesas se arrastam já e se arrastam os meus olhos pelos papeis – tanta tinta gasta, senhores, e a propósito de nada – somo agora melhores ou mais felizes? – se não fosse o mar ao fundo talvez eu ficasse assim mesmo parada e doida (doida, doida), à espera da onda de espuma e insensatez.

Faz-me falta o mar para lavar-me a solidão e o medo e o desejo. Tudo isto assim lavado a sal me parece menos mal. E, entretanto, se não acharmos o mar pelo caminho, ergamos então um copo loucura e – porque não? – vamos todos dançar nus na rua!