segunda-feira, agosto 29, 2011

Crónica de Segunda - Silêncio. Ou o princípio de todas as coisas.

Há uns bons pares de anos, encontrava-me num café-galeria na companhia de um amigo e do seu filho de sete anos. Enquanto nos perdíamos numa conversa de adultos o miúdo, no colo do pai, olhava atentamente os quadros expostos em redor. No final questionou “Pai, porque é que todos os quadros têm branco?”. O Pai explicou-lhe que era no branco, na ausência de cor, que todas as cores e ideias nasciam, criando o resto do quadro, daí que o branco fosse o elemento comum a todos os quadros – cuja autoria não me recordo mas lembro bem que eram bastante vivos e coloridos.
Pouco mais velha do que o filho do meu amigo àquela época, aprendi em aulas básicas de música que, não só havia lugar a silêncio como, para melhor o marcar, existia mesmo um símbolo para o representar na pauta – a pausa, tal qual como os símbolos das diferentes notas musicais. Fiquei com o conhecimento mas creio que, à época, não cheguei a compreender o porquê de assim denunciar na pauta que era tempo de não-som, de silêncio, sabendo que naquele tempo eu confundia ausência de som com ausência de música. Faltou-me, certamente, o meu amigo a explicar-me paciente e paternalmente que, tal como o branco e a ausência de cor, o silêncio era a base onde nascia o restante som, tanto a música como o ruído.
Agora, já muito adulta, o que não daria para que, no colo do meu Pai, ele me explicasse o tanto por saber sobre o silêncio. Quiçá mesmo esse meu amigo, se aqui estivesse comigo, me fosse capaz de explicar de onde partimos quando vamos pelo silêncio.
Do silêncio, como de um vazio, nascem todas as coisas, todas as músicas, todas as palavras mas, por ser silêncio, é também ausência e, ainda que belo, diria mesmo belíssimo, é, ao mesmo tempo, um mistério, pronto a tornar-se angústia. A angústia de desconhecer se o silêncio do outro quer dizer “Amo-te” ou apenas “não quero falar contigo”, se quer dizer “sei que me entendes” ou “não tenho nada para te dizer”. A pueril pergunta (a evitar, Santo Deus!) de amantes em início de carreira depois de se entregarem “Foi tão bom para ti como foi para mim?”, deveria ser obrigatoriamente substituída por o “O teu silêncio é igual ao meu?”.

segunda-feira, agosto 22, 2011

Crónica de Segunda - O Amor intermitente

“Não posso adiar o amor para outro século/Não posso […] Não posso adiar o coração” Ramos Rosa

Devo desde já adiantar, em jeito de nota prévia, que me irritam sobremaneira as pieguices, as estórias de amor para sempre enquanto dura, as paixões e trovas de amor eterno ao primeiro olhar e o conceito abstracto da felicidade. Esta última é de todas as pieguices do foro sentimental a que mais me incomoda. A forma como as pessoas se lançam na sua busca e pior, muito pior, a forma como dizem de boca cheia que a encontraram parece-me um mistério filosófico mais complexo de acreditar do que no mistério de Roswell, no abominável homem das neves ou mesmo no Pai Natal. Vai daí, registe-se, não acredito na felicidade, nem na sua existência e menos ainda na sua persistência.
Acredito porém no Amor, assim mesmo com maiúscula, como motor de todas as coisas e única razão para nos fazer persistir. Que não haja lugar a confusões, o Amor a que me refiro não é nem desejo, nem sexo, nem estórias cor-de-rosa com luas cheias e nenúfares a vogar em amenos lagos, o Amor de que falo é apenas isso mesmo – Amor. Amor só, Amor nu, Amor cru, Amor despido de enfeites, de eufemismos, Amor como aquele de que fala Ramos Rosa, o que não se pode adiar, Amor que dói, que fere por dentro, que rasga a pele, que inquieta e pacifica, Amor que não se atrasa e não se deixa para uma hora melhor porque Amar é igual a Estar. O Amor é o contrário da ausência, porque Amar é Estar sempre.
Não consigo conceber o amor intermitente que alguns dizem cultivar, o amor com hora marcada, amor em contenção, o amor nos intervalos das outras coisas mais importantes que esse “amor”, o amor quando dá jeito ou de quando nos lembramos ou de quando nos falta outro divertimento, amor dos dias pares, o amor se não chover, enfim, amor gizado à imagem de quem assim o fabrica, embiocado no umbigo do amador, amor sem aquilo que caracteriza o Amor – o despojamento. Esse tal de amor é da mesma família da felicidade em que não acredito, conceito bonito de evocar, muito apreciado nos filmes e na literatura, com tanto de realidade como o King Kong ou um elefante azul.
Amar é dar, dar, dar. O que se recebe, quando se recebe, vem por acréscimo.

segunda-feira, agosto 15, 2011

Crónica de Segunda - Efemérides



A crónica de segunda de hoje é uma crónica de feriado, de dia santo, dia repetente de calendário em calendário, até que algum governante possuído pela febre produtiva do povo, a quem suga intempestivamente os impostos, resolver determinar outro dia para a sua comemoração ou o eliminar de todo.

Assim me pus a pensar sobre a ideia de efeméride, nome apelativo e elucidativo sobre as coisas que comemoramos na vida, tudo tão efémero como a palavra efeméride nos faz lembrar; talvez por isso alguns se iludam e digam não as comemorar certamente para fugirem a ter de pensar quão curta é esta nossa (e a dos outros ) passagem. As efemérides, as datas que se repetem e comemoram, as que não esquecemos nas brumas da memória são, na verdade, um frete da existência, tornando a percepção que temos da vida mais cinzenta e cheia de finitude.

Dá-se o caso de recentemente ter ocorrido comigo uma daquelas de número redondo , comemorável, que num repente me trouxe de enxurro peça a peça os elementos de uma velha história (tão velha quanto a efeméride em causa e a ela fortemente ligada) com que fui compondo de memória um puzzle. Como quem limpa o pó e teias de aranha a uma velha fotografia esquecida no sótão da casa e percebe que perdeu a nitidez e a cor mas não perdeu nada em capacidade de nos fazer vibrar a corda da ausência e da saudade.

terça-feira, agosto 09, 2011

Crónica de Segunda - Melancrónica

Não sei se é de ser Agosto, suposta silly-season, se é deste Verão envergonhado em que dias há que parece quase Outono ou se é de mim, mas esta crónica é melancólica, é uma melancrónica portanto.
Há alturas em que uma sucessão de pequenas coisas se juntam numa grande lembrança, memórias de um tempo passado que nos arrastam pesados para a melancolia. Um reencontro com uma colega de trabalho que não víamos há uma eternidade a refazer, num repente, uma época e um local que já não existem, pequenas estórias com personagens comuns de quem nos fomos afastando; o tornar a um lugar que já só existe como uma sombra de passado mas que traz imagens e odores que nos são tão familiares; o tornar a um livro lido há tantos anos que nos faz lembrar das suas primeiras leituras e um conjunto de afectos tão velhos como ele próprio a desfazer-se em lembranças, poema a poema, frase a frase, de um tempo que já não é. E de repente começamos a refazer uma velha história de gente e lugares que parecem agora fora do sítio, um chorrilho de recordações, algumas dispersas e ténues, outras mais firmes e precisas como se não tivesse passado tempo algum, tudo junto completando um puzzle em tons desmaiados, peça a peça nas pontas dos dedos a refazer a fotografia a sépia.
Podemos nós fazer caminho e libertarmo-nos daqueles que antes foram tão próximos, tão íntimos, tão dentro do coração? Ou ficarão as memórias perenemente n um nicho escondido à espera da melhor oportunidade para nos importunarem e trazer-nos de volta a um Verão passado, tão passado que é já Outono e começamos, de olhar triste a ver as folhas caírem da nossa árvore privada, uma a uma, lentamente, devagar, como um Outono deve ser.

terça-feira, agosto 02, 2011

A metáfora (uma reposição)



Gosto de abrir a janela pelo fim da tarde dos dias de Maio. Abro-a e fico a ver entrar o calor no seu primitivo vigor primaveril junto com alguns farrapos de nuvens. Da janela vejo os pássaros e às vezes apetecia-me que me entrasse um deles pela casa. Raramente acontece e quando acontece é um aborrecimento, ter de andar a enxotá-lo e ele a esvoaçar assustado por toda a casa, depois limpar os excrementos que ele desastradamente espalhou sobre a mobília – o bicho não tem culpa, é um pássaro, não é uma metáfora de pássaro. Olho de novo a janela e reformulo: “Às vezes queria que me entrasse uma metáfora pela janela”